sexta-feira, 17 de maio de 2013


 ESPÍRITO SANTO: AÇÃO DE JESUS RESSUSCITADO NA HISTÓRIA
  

Milagre de Pentecostes
Na cruz, quando os opressores se julgavam vitoriosos, Deus vence. Torna-se, desse modo, o Senhor da vida. Jesus, contudo, não nos deixa órfãos. É preciso que eu vá. Se eu não for, não mandarei a vós o Espírito Santo. Ele dará testemunho de mim. Ele vos ensinará toda a verdade (João 14,26). O Espírito Santo dará aos seguidores de Jesus a capacidade para compreenderem toda a sua mensagem.

Quando vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à verdade plena, pois não falará de si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos anunciará as coisas futuras (João 16,13). O Espírito Santo dará aos seguidores a capacidade para compreender toda a mensagem de Jesus. E assim acontece. Cinqüenta dias após a Páscoa, de junto do Pai, para onde fora, Jesus envia seu Espírito.

Os Atos dos Apóstolos, que descrevem a vida da comunidade dos seguidores, narram esse fato maravilhoso. A comunidade se recompõe e Matias é escolhido no lugar de Judas (Atos 1,15-26). Os Apóstolos, com medo, estão, contudo, fechados no Cenáculo. Dez dias depois do retorno de Jesus para junto do Pai, eles mudam completamente de atitude.

Lucas descreve o fato de Pentecostes como uma grande manifestação da força de Deus.
Tendo-se completado o dia de Pentecostes, estavam todos reunidos no mesmo lugar. De repente, veio do céu um ruído como o agitar-se de um vendaval impetuoso, que encheu toda a casa onde se encontravam. Apareceram-lhes, então, línguas como de fogo, que se repartiam e que pousaram sobre cada um deles. E todos ficaram repletos do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia se exprimissem (Atos 2,1-4).

Medrosos anteriormente, os Apóstolos saem corajosos.
Nós os ouvimos anunciar em nossas próprias línguas as maravilhas de Deus (Atos 2,11). Uma multidão de curiosos se reúne. Vêem e escutam os seguidores do Nazareno. E aqueles que haviam fugido diante da morte de seu chefe (Mateus 26,56), deixando-o só, saem destemidos.

Pedro negara Jesus diante de uma mulher. Agora, intrépido, confessa-o vivo: Homens de Israel, ouvi estas palavras. Jesus, o Nazareno, foi por Deus aprovado diante de vós com milagres, prodígios e sinais... Este homem vós o matastes, crucificando-o pela mão dos ímpios. Mas Deus o ressuscitou... Saiba, portanto, com certeza, toda a casa de Israel: Deus o constituiu Senhor e Cristo, este Jesus a quem vós crucificastes (Atos 2,14-32). Continua firme o Apóstolo: Convertei-vos e cada um de vós seja batizado em nome de Jesus Cristo para a remissão dos vossos pecados (Atos 2,38).

Começa uma nova era na vida dos homens e mulheres que tinham aderido à Boa Nova da salvação trazida por Jesus. Forma-se uma comunidade unida, que se auxilia mutuamente e dá testemunho pleno. Todos percebem que algo inédito aconteceu desde o primeiro momento. Não são todos galileus estes que estão falando? Como é, pois, que os ouvimos falar, cada um de nós, no próprio idioma em que nascemos? (Atos 2,7-8).

O Reino vai crescendo pela força do Espírito. O número dos discípulos aumenta.
Mas, afinal, quem é esse Espírito Santo que realiza tais prodígios? A Bíblia não explica quem é o Espírito Santo. Ela mostra o Espírito agindo na comunidade do povo de Israel e na comunidade dos seguidores de Jesus.

Quando o povo sai do Egito, o Espírito é o seu protetor, em forma de sombra durante o dia e de luz durante a noite (Êxodo 13,21-22). Israel, em sua caminhada pelo deserto, viveu em regiões de ventos fortes e uivantes. Esta experiência permitiu-lhe vivenciar a força de Deus. Viu no vento impetuoso a presença de Deus capaz de reforçar a vitalidade dos bons, assim como a ventania forte permite que as árvores enraízem com firmeza. Mas viu, também, a capacidade que Deus tinha de destruir o mal e reduzi-lo à impotência.

Isaías afirma claramente estas verdades (7,2; 17,13). Mais. O povo acreditava que se Deus dava a vida pelo seu sopro vital (Gênesis 2,7), podia também tirá-la por sua ação e recriá-la por seu poder. É o que lemos no Salmo 104(103),29-30:
 Retiras sua respiração e elas expiram, voltando ao seu pó. Envias teu sopro e eles são criados e assim renovas a face da terra.

No seu amor ao Espírito de Deus e na sua consciência de adoração, o povo cristão reza: Enviai o vosso Espírito e tudo será criado e renovareis a face da terra.

O Espírito de Deus é a sua força atuando em meio ao seu povo. Ele é o poder do Deus vivente que age na sua história. Moisés anteviu essa ação de Deus, quando afirmou: "Oxalá todo povo de Javé fosse profeta, dando-lhe Javé o seu Espírito" (Números 11,29). Povo forte e que escravizara Israel por séculos, o egípcio era temido. Isaías o desafia, dizendo: "O egípcio é homem e não deus, os seus cavalos são carne e não espírito" (Isaías 31,3). O povo de Israel experimenta Deus, não na natureza, querendo adivinhar seu poder, mas em sua ação, conduzindo a história, e os profetas lêem essa ação. Ser profeta é justamente isso: ler Deus conduzindo a história por meio do seu Espírito (cf. Ezequiel 37,1-14).

O Espírito de Deus cria um coração novo, livre para amar. Um coração que se conforma ao querer divino e acredita que Deus é capaz de tudo transformar pela força do seu Espírito. Dirá Ezequiel: "Lançai fora todas as transgressões que cometestes, formai um coração novo e um espírito novo" (18,31). O Espírito de Deus, como força que provém de fora do homem, os transforma de tal forma que os torna capazes de gestos radicais em favor dos irmãos.

As pessoas que são tomadas pelo Espírito tornam-se colaboradoras de Deus e servidoras do povo. Este Espírito, enquanto vem de Deus e orienta para Deus, é santo. Enquanto se torna presente e consagra Israel para Deus, é santificador. Esparramado - e este é o melhor termo - sobre Israel, como uma chuva que inunda a terra (Isaías 32,15), como quem realiza nova criação e cria corações novos, plasmando-os para Deus. Conduzido por este Espírito, Israel reconhecerá e confessará Deus, que o acolherá como o seu povo: "Não tornarei a esconder deles a minha face, porque derramarei o meu espírito sobre a casa de Israel...". Deus "dará ao povo um coração novo, colocará no seu íntimo um espírito novo, tirando do seu peito o coração de pedra e dará um novo coração" (Ezequiel 39,29; 36,26; conforme, também, Jeremias 31,33).

Os profetas, contudo, vão além. Afirmam que, no final dos tempos, o Espírito será dado a todos, sem distinção: Depois disto, derramarei o meu espírito sobre toda carne. Vossos filhos e vossas filhas profetizarão... mesmo sobre os escravos e sobre as escravas, naqueles dias, derramarei o meu Espírito (]oel 3,1-2).

O Espírito nos leva a fazer uma experiência do Ressuscitado
Prometido como a força dos tempos novos, o Espírito Santo é reconhecido e vivido como a experiência profunda que os apóstolos fizeram da ressurreição de Jesus em suas vidas. Ele
foi, em primeiro lugar, um dado da experiência e depois uma afirmação da fé. Os apóstolos descobriram que o dom mais precioso que Jesus trouxera fora, justamente, o Espírito. Com Ele começavam os tempos novos.

Os apóstolos descobrem, num primeiro momento, que o Espírito Santo é o Espírito de Jesus. Impulsionados por Ele, são levados a repetir os mesmos gestos, a anunciar as mesmas palavras de Jesus (Atos 4,30), a rezar a mesma oração de Jesus (Atos 7,59-60). Continuam, na fração do pão, a ação de graças que Jesus apresentou ao Pai antes de sua morte na cruz. Sentem a necessidade de viver a mesma união entre os novos discípulos, como outrora fora a união dos apóstolos com Jesus (Atos 2,42; 4,32).

O Espírito Santo torna-se a alma da comunidade dos seguidores de Jesus. Ele anima a Igreja, Corpo de Cristo, tornando-se seu princípio vital. Os seus dons, desde os mais simples, como os das línguas ou das curas, até os mais elevados, como o da fé, da esperança e da caridade, estão todos a serviço do Evangelho (I Tessalonicenses 1,5) e dos membros do Corpo de Cristo.
O apóstolo Paulo, lido com atenção e profundidade, dirá que o importante não são os dons extraordinários do Espírito. O fundamental é que se abra para as suas ações mais cotidianas. São elas que dão valor à vida do cristão como uma vida que se define pela relação com Cristo e com o seu Espírito. Paulo mostra, desse modo, a grandeza e a beleza da vida dos seguidores de Jesus. Ela é vida em Cristo Jesus (l Coríntios 1,30; Romanos 8,10) e também no Espírito (Romanos 8,9).

O Espírito nos interpela a ser discípulos
Na festa de Pentecostes, celebramos o nascimento da Igreja missionária. Os discípulos recebem o Espírito Santo e descobrem qual é a sua missão: tornam-se comunicadores da Boa Notícia de Jesus a todos os povos.

De Pentecostes nascem as primeiras comunidades cristãs. Elas são reconhecidas pela fé no Ressuscitado, pela observância da Palavra de Deus e vivência em comunidade. Experimentar o Espírito Santo é percebê-lo como vento livre e penetrante - que não é apenas "ar", mas "ar em movimento" - capaz de espalhar palavras e juntar pessoas. Ele sopra onde quer. Nós não o possuímos, temos apenas que nos deixar conduzir por Ele...

Em torno da Palavra desenvolvemos vários dons próprios do Espírito: sabedoria, ciência, conselho, inteligência, fortaleza, temor de Deus, discernimento. Que o Pentecostes de hoje, expressão da nossa experiência com o Ressuscitado, transforme a massa de pessoas anônimas e distantes em comunidades, onde todos comuniquem a mensagem do Reino e estejam unidos no mesmo espírito - a linguagem do amor, pois quem ama conhece a Deus e possui seu Espírito. Espírito e Palavra caminham juntos, um revela o outro, um faz viver melhor o outro e ambos são geradores de comunidades.

O Espírito de Deus é a sua força atuando em meio ao seu povo. Ele é o poder de Deus que age na história.

As pessoas que são tomadas por esse Espírito tornam-se colaboradoras de Deus e servidoras do povo. O Espírito é reconhecido através dos tempos como a experiência profunda que os apóstolos fizeram da ressurreição de Jesus em suas vidas. Ele é, portanto, a alma da comunidade dos seguidores de Jesus, o animador da Igreja.

Citações Bíblicas
• o Espírito é o sopro de Deus presente na criação: Gênesis 1,2; 2,7; Sabedoria 15,11; Eclesiástico 38,23; Salmo 33(32),6;

• o Espírito é agente do poder do Senhor. Fez o mar se abrir para os hebreus passarem: Êxodo 14,19-22;

• apossa-se dos profetas para que deem a Palavra de Deus ao povo: Números 11,17; 24,2; 2 Samuel 23,2; l Reis 18,2; 2 Reis 2,16; Isaías 61,1; Oséias 9,7;

• Ilumina os que devem servir ao povo: juízes  reis e em particular o Messias, Servo do Senhor: l Samuel 11,6; 16,13; Isaías 11,2-5; 42,1-4; Jonas 3,10; 11,29;

• é ele que impulsiona à realização do Projeto de Deus: Lucas 4,16-21;

• Jesus promete aos discípulos o Espírito Santo, como outro consolador e advogado: João 15,26; 16,13;

• na hora de sua morte, Jesus nos entrega seu Espírito: João 19,30;

• o Ressuscitado sopra sobre os discípulos dando-lhes o Espírito para a missão: João 20,19-23;

• os apóstolos e Maria esperam a vinda do Espírito no Cenáculo. Ele desce sobre a comunidade em Pentecostes: Atos 2,1-22 (livro do crismando), e sobre os pagãos: Atos 10,44-47.

sexta-feira, 10 de maio de 2013

A psicanálise, as depressões, a culpa e o perdão
 Por José Del-Fraro Filho

A psicanálise pode ajudar o cristão a depurar e amadurecer sua fé e a não deslocar para Deus e a religião as fantasias, frustrações infantis, neuroses, excessos de culpa, rigidez e de moralismo.

1. A psicanálise e as depressões
É muito comum, como psicanalista, receber no consultório pessoas arrasadas pela angústia e em estado depressivo considerável. Nos dias de hoje, as depressões assolam jovens, adultos, idosos (vinte vezes mais comum nessa faixa etária) e até mesmo crianças… As depressões são distúrbios que muitas vezes necessitam de auxílio medicamentoso por se relacionarem às alterações bioquímicas passíveis de ser harmonizadas com psicofármacos. Porém, sempre recomendo aos meus clientes que naveguem em águas mais profundas e aproveitem o momento para uma análise, ou seja: para uma viagem ao interior de si mesmos.

Os remédios bloqueiam os sintomas ao harmonizarem a bioquímica alterada. Porém, além de fatores genéticos, a pós-modernidade com seu individualismo, competitividade, afrouxamento dos laços afetivos, neoliberalismo, associada à história singular de cada sujeito, vai definir a saúde ou doença e o grau de saúde psíquica das pessoas. Nos conflitos psicológicos, os medicamentos pouco podem fazer… Muitas pessoas chegam desesperadas aos consultórios e demandam verdadeiros milagres através dos psicofármacos. É preciso contextualizar e ponderar a complexidade do distúrbio e não embarcar no imediatismo, outro engodo de nossos tempos.

Ajudar o cliente a criar uma demanda, uma questão, uma pergunta fundamental, uma dúvida sobre suas neuróticas certezas, um hiato no seu discurso projetivo e muitas vezes sem faltas é tarefa fundamental na tentativa de diminuir sua alienação a respeito de si mesmo. Seria aparentemente muito mais fácil buscar solução que venha de fora, sem esforço ou trabalho psíquico, sem ter de tocar em suas feridas, sem ter que revirar a intimidade.

Apesar de ser inerente ao ser humano, a ambivalência de sentimentos nas pessoas depressivas chega a extremos, desencadeando a doença. As perdas reais e imaginárias que o deprimido passa ao longo de sua vida, principalmente em sua infância e adolescência, o conduzem processualmente à depressão. Essas perdas e falta de cuidados, a maioria inconscientes, levam o sujeito a fantasias de destrutividade e retaliação em relação às pessoas amadas. Odiar e destruir, inconscientemente, aqueles que mais amamos é um conflito árduo para nossas frágeis almas.

Os depressivos geralmente são muito exigentes consigo próprios e têm ideais muitos altos, já “engoliram muitos sapos”, justamente das pessoas que mais amam, e estão cheios de mágoas e ressentimentos.

Processar lentamente essas feridas estampadas e escondidas pela própria depressão é desafiador, porém grandemente libertador. E a energia psíquica envolvida no conflito poderá ser utilizada para outros fins, melhores para o sujeito e a sociedade.

Uma análise existe para processar todos esses conflitos inconscientes, uma pessoa poderá reviver sem julgamento do analista, sua dor, mágoa, ódio, sua destrutividade.

2. A psicanálise, a culpa e o perdão
Nessa etapa, gostaria de abordar de onde vem boa parte de nossos sentimentos de que estamos em pecado ou em dívida com as pessoas, com o mundo, com Deus.

Nós temos em nossa consciência, um espaço de liberdade e discernimento a nos implicar em nossas ações e escolhas. Porém o inconsciente se interliga ao consciente de forma inextricável e constitutiva da consciência. Isso nos leva ao raciocínio de que nossa liberdade é apenas parcial no que se refere às nossas condutas. Muito daquilo que denominamos pecado é na verdade limitação histórica, falta de cuidados recebidos, falta de amor que acirra nossa destrutividade e culpa inconsciente, e não pecado.

A criança e o adolescente, ao se tornarem adultos, carregam, independentemente de terem alguma religião, mais ou menos grau de culpa. Isso se dá pelas seguintes situações vividas por todos nós no amadurecimento emocional (apenas enumerando algumas delas):

* Culpa por ter desejado ser exclusivo no desejo e na vida da mãe (e os desejos inconscientes não morrem nunca).
* Culpa por ter desejado, na fantasia, destruir o seio e o corpo materno e a própria mãe como pessoa, por ter sido frustrado no desejo de exclusividade e por ela não ter satisfeito todos os nossos desejos e necessidades.
 * Culpa por ter desejos incestuosos pelo genitor do sexo oposto e pela rivalidade com o genitor do mesmo sexo.
 * Culpa por não ter pelos pais apenas sentimentos sublimes, construtivos.
 * Culpa por ter desejado a morte de irmãos rivais.
 * Culpa por ter desejado excluir o pai da relação mãe e filho(a).
 * Culpa por ter desejado, de maneira homoerótica, ou seja, o genitor do mesmo sexo ou criança do mesmo sexo.
 * Culpa por não corresponder totalmente aos ideais que os pais gostariam, e por atos que a criança, ao crescer (superego), percebe serem contrários aos interesses civilizatórios e familiares.
 * Culpa pela ambivalência afetiva constitutiva: o amor e ódio pela mesma pessoa (pais).
 * A culpa é constitutiva da natureza humana, o excesso de culpa é patológico.

Mediante esse rosário de culpas a criança, para não sucumbir, elabora fantasias e atos reparadores. O amor e a sobrevivência dos pais são fundamentais para que as reparações inconscientes possam integrar melhor o seu amadurecimento. A reparação pode acontecer de várias formas, sadias e neuróticas, e pode nos transformar em adultos éticos, criativos, bondosos, sublimes ou submissos, excessivamente escrupulosos, obsessivos etc. Tudo isso movidos pelo desejo de reparação interna e externa.

Quando, na vida adulta, alguma situação apresenta semelhança com aquilo já vivido, o inconsciente se manifesta e vem à tona algum rastro ou marca de culpa em nossas consciências. A angústia sobrevém e sentimos necessidade de dar um nome ao vivido. Esse descompasso, essa inadequação, essa coisa fora de lugar que incomoda e gera desconforto costumamos associar, em nossa cultura judaico-cristã, a pecado.

Há Igrejas e modelos de Igrejas que tentam trabalhar a pessoa, bem ou mal intencionadas (não cabem aqui julgamentos), pelo prisma do moralismo, do dogmatismo e fundamentalismo. O ser humano, nesse estado, acaba perdendo muito de sua espontaneidade e criatividade, além da capacidade de crítica. Movidas e freadas pela culpa inconsciente, mais vivida na consciência como pecado, as pessoas se tornam massa de manobra, escravas de líderes carismáticos, de normas e regras farisaicas. E elas passam a tratar o próximo com enorme severidade e rigor, como seus superegos as tratam.

Escutando tantas pessoas todos os dias e há tantos anos em consultório, a cada dia mais me convenço que a culpa mal trabalhada leva não somente a excesso de escrúpulos, mas a neuroses, precipita doenças como a síndrome do pânico, obsessões e até mesmo graves doenças psicossomáticas. Mas, principalmente, conduz o ser humano a uma infelicidade crônica, a um boicote quanto a uma boa qualidade de vida.

A misericórdia que Jesus teve e tem por todos nós – filhos pródigos e herdeiros de nosso próprio inconsciente e ideologias – deveria ser emblemática para nossas condutas quanto a nós mesmos e aos outros. Realmente, não sabemos com exatidão aquilo que fazemos conosco e com o próximo. Muito menos sabemos as reais motivações quanto às condutas dos outros em relação a nós mesmos.

O amor a Deus e ao próximo e o maior conhecimento e amor por nós mesmos são as principais fontes de restauração aos danos reais e imaginários e às culpas reais e imaginárias que carregamos. São as principais formas de restaurarmos nosso ser e aqueles que amamos.

 3. Psicanálise, perdão, culpa e religião
Falar a respeito de pecado e perdão sempre tocou o inconsciente e as emoções das pessoas. Em dias atuais, é comum a palavra “pecado” provocar reações díspares. Em um extremo pode mobilizar tristeza, pânico, graves inibições. No polo oposto poderá sobrevir deboche, indiferença, pois, para algumas pessoas, falar sobre esse tema é “careta”, ultrapassado.

Nesse grupo existe uma subdivisão interessante: há aqueles que se afastam completamente dessa questão por não acreditarem em nada que se refira à religião e aqueles que não suportam sequer escutar a palavra “pecado”. Associam-na a sacrifício e penitências absurdas. De seus inconscientes, retornam cenas de abuso de poder dos pais e de igrejas. Percorreram um árduo caminho para se libertarem das amarras do castigo, do medo e, após alto custo emocional e tortuoso caminho, descobriram, enfim, o amor de Deus.

Penso que nos extremos desse grupo pode existir como pano de fundo, um intenso sentimento de culpa inconsciente, forjado na infância dessas pessoas e não trabalhado por elas. Os pais, as famílias, as igrejas podem colaborar e muito para evitar esse excesso de culpa, que paralisa o ser humano. As crianças leem no comportamento e no inconsciente dos pais como elas devem ser para se sentirem amadas. E para angariar estima e amor se moldam no que imaginam corresponder ao desejo deles. Muitas não puderam expressar e reprimiram excessivamente suas raivas, mágoas e a sexualidade. Para essas pessoas, as religiões podem desencadear novas culpas, reagudizar conflitos inconscientes ou ser uma alavanca em que se submetem compulsivamente a normas, regras, numa obediência cega e infantil. Perdoam o próximo simplesmente “porque Jesus mandou”, não se permitindo sentir raiva, questionar, refletir, elaborar os fatos vividos.

O perdão é um processo gradual, lento, doloroso, em que muitas vezes precisamos vivenciar angústia, indignação e sentimentos contraditórios. Conflitos, ambivalência, medo, raiva, culpa podem ser mobilizados e não devemos reprimi-los excessivamente.

A fé, infelizmente, pode ser utilizada como válvula de escape para a pessoa não se dar conta de sua própria agressividade. E perdoar pode se transformar em compulsão a reprimir a agressividade sentida, mediante a ofensa recebida. O motor de todas essas defesas é o terrível sentimento de culpa inconsciente desse grupo de pessoas, nada desprezível em termos numéricos.

As religiões podem funcionar como fuga de uma agressividade mal canalizada, e a pessoa não somente reprime a raiva que sente como retorna a mesma para o seu próprio interior. Uma fé assim vivida pode levá-la à depressão, pânico e até graves doenças psicossomáticas ou, no mínimo, a uma má qualidade de vida. Algumas pessoas rompem bruscamente ou não aderem a nenhuma religião, criticando todas elas.

A psicanálise é a ciência que lida com esses sentimentos de culpa da pessoa. Essa ciência promove um maior espaço de liberdade e responsabilidade na construção de sua história e do mundo.

Infelizmente, Freud só percebeu a religião como uma neurose coletiva movida pela culpa e pelo infantilismo, em que a criança projeta na figura de Deus seu desamparo infantil e transfere (quando adulto) seus anseios de amor infinito, dos pais para um “deus de prótese”.

Para um psicanalista cristão chega a ser doloroso esse fosso, esse abismo aparentemente existente entre psicanálise e religião, que o próprio Freud tentou sustentar. Porém, é preciso lembrar que Freud sofreu muito em sua infância com as humilhações e desprezos que seu pai, Jacob, passava por ser Judeu. Além disso, tinha grande receio de que o puritanismo vitoriano, vigente na sua época, rechaçasse suas desconcertantes descobertas psicanalíticas. Apesar disso, nunca recusou pacientes que se declarassem adeptos de quaisquer religiões e se tornou grande amigo de um pastor chamado Pfister. Esse último se tornou psicanalista e amigo para sempre.

A psicanálise pode ajudar o cristão justamente nos pontos que Freud criticou. Ela pode nos ajudar a desfazer mitos inconscientes, idealizações quanto aos nossos pais da infância, auxiliar na elaboração de nossa agressividade e a desfazer os conflitos de nossa sexualidade. Articulada a uma fé madura nos ajuda a não deslocar para Deus e a religião nossas fantasias e frustrações infantis.

E assim depurados pela psicanálise, as ilusões e idealizações infantis, e de nossos excessos de culpa, estaremos mais aptos na descoberta do verdadeiro Deus: o Deus do perdão, da misericórdia e do amor. Integrados pela fé madura e mais livres de nossos conflitos inconscientes, estaremos mais abertos para sentir e viver Deus em tudo e em todos.

 4. Psicanálise e perdão
 Parece estranho à primeira vista, mas algumas vezes em nossas vidas, não conseguimos perdoar em profundidade, porque não sabemos exatamente o que e a quem realmente perdoar.

É que a força e o conteúdo maior de nossos sentimentos, mágoas, feridas se referem a situações tão penosas e antigas – nos reportam à nossa infância e adolescência – que os recalcamos em nossos inconscientes e nos tornamos alienados desse saber. Porém, na vida adulta, quando situações semelhantes acontecem conosco, deslocamos com toda força nossas indignações e mágoas reagudizadas para a situação atual. A mesma ganha fortes pinceladas emocionais, e a mágoa dirigida às pessoas das relações atuais é desproporcional. Assim, é comum escutarmos pessoas falando que “não foram com a cara” de alguém, mesmo que esse jamais tenha feito qualquer coisa de prejudicial a elas… Isso não se refere apenas ao “narcisismo das pequenas diferenças” como nos ensinou Freud. O inconsciente é formado por traços de memória, por representações e fantasias que a criança produz a partir de suas vivências, principalmente com os pais e irmãos. Muito do que sentimos, na atualidade, vem dessa fonte que se aproveitou de um gancho, de um dado atual para se reatualizar em nossas vidas. Até mesmo um olhar, um lugar, um jeito de falar pode detonar a angústia ou o amor… Não somos senhores de nossa própria casa, de nosso eu e o inconsciente penetra e se apodera de boa parte dessa casa. Algumas vezes tratamos um vizinho ou algum colega de trabalho com desconfiança ou frieza. Pequenas desavenças se transformam em grandes confusões e disputas, pois no inconsciente, vizinho, colega, por associação, pode representar um próximo, um irmão rival da infância. Na vida amorosa, catástrofes, brigas, separações muitas vezes seguem a lógica do inconsciente, da realidade psíquica.

Corremos o risco de deslocar, projetar, transferir para o cônjuge todos os nossos anseios e desejos de sermos amados incondicionalmente. Idealizamos uma relação como gostaríamos de ter tido com nossa mãe (ou pai). No momento em que o cônjuge sai desse lugar ou “falha”, todos esses anseios primitivos de amor ideal podem vir à tona e a desilusão e a mágoa inconscientes podem reaparecer ou nos causar angústias inexplicáveis ou até mesmo depressões.

A figura de um político, policial, padre, professor ou alguém que se coloque como autoridade, lei, pode ter o poder de nos remeter às nossas mais primitivas angústias, medos e raivas enraizados nas formas como essas leis foram passadas por nossos pais e introjetadas por nós.

Muitas vezes perdoamos as pessoas de nossa realidade atual, fazemos um esforço tremendo para resolver a situação. Mas a ferida mais profunda inconsciente e infantil continua intocável. Somente aparamos a planta desse mal, mas suas raízes psicológicas continuam vivas e prontas para se manifestar na primeira oportunidade que tiverem.

Perdoar é um processo complexo de libertação emocional e espiritual. Conversar com Deus, com o padre, o amigo, o psicanalista, com o agente da dor, tudo isso pode fazer parte desse belo, doloroso e lento processo. Silenciar, negar, sufocar a raiva inicial que o acontecimento provoca são as piores soluções, pois isso não ajuda a elaborar o acontecimento e a realmente se livrar e aprender com a situação. O ideal é que a pessoa consiga expor para o outro o quanto foi atingida, e que no diálogo possa haver crescimento para ambos e a reconciliação se faça. Porém, nem sempre isso é possível. Não controlamos o outro, sua capacidade de rever a si mesmo e seu grau de espiritualidade. Quando a ferida é muito profunda, ela ainda deixa um resto, uma cicatriz pela vida toda. Ela só irá esmaecer-se por completo no instante final, quando o ser humano em sua liberdade final estará mais próximo de suas verdades derradeiras: a bondade e a misericórdia de Deus presentes.

A capacidade de perdoar se diferencia de pessoa para pessoa. O grau de maturidade da fé e a história singular da pessoa definem esse potencial. Para aqueles a quem foi dada pouca oportunidade, em sua infância, de restaurar os outros, quando diante de sua destrutividade, o perdão é mais difícil. A criança é dotada do desejo de destruir a si e aos outros quando sente falta de cuidados ou excessivas frustrações. Cabe aos pais a tarefa de diminuir essa destrutividade através do amor. Caso este falte, as fantasias destrutivas aumentam e a capacidade de reparação da criança pelos danos feitos em fantasia aos pais, diminui. Quando adultos, terão menos capacidade de reflexão e implicação nos seus atos, menos capacidade de perdoar a si e aos outros.

Perdoar significa avanço psicológico e espiritual. É restaurar o outro e o mundo interno. Ao perdoar o outro, estamos inconscientemente dando uma trégua ao nosso próprio eu. Em termos de psicanálise, nosso superego – nossa parte da mente que observa, julga e pune nossos desejos (Id) e atos – se torna, no ato do perdão, menos exigente, menos carrasco. Nosso eu se torna mais livre e saudável. Tratamos os outros conforme o nosso superego nos trata. Quando perdoamos o outro, automaticamente nos apaziguamos.

Fazer o bem ao próximo deveria ser tão caro a nós, quanto o bem que gostamos e precisamos receber dele. Porém, a psicanálise nos ajuda a penetrar na profundidade das palavras de Jesus na cruz: “Pai, perdoai, eles (TODOS NÓS) não sabem (AO CERTO) o que fazem” (SABEMOS APENAS PARCIALMENTE O QUE FAZEMOS).

José Del-Fraro Filho*
* Psiquiatra, Psicanalista, autor do livro Os obstáculos ao amor e à fé: Amadurecimento Humano e Espiritualidade Cristã, Paulus.
Email: clinicafraro@planetarium.com.br

FONTE: REVISTA VIDA PASTORAL

quinta-feira, 2 de maio de 2013


Realização do ser humano
**Por Pe. Juvenal Arduini (fonte: Vida Pastoral)

1. Ánthropos
No momento, o que mais deve preocupar é a situação da humanidade. O olhar há de centrar-se em Ánthropos, e não em Khronos. A realização do ser humano é fenômeno antropológico, e não expectativa milenarista. Realização é converter em realidade o que não era ainda realidade. É ser-mais. Em geral, realização expressa sentido positivo. Mas o virar realidade é ambíguo. Pois, ao tornar-se realidade, o ser humano pode converter-se em realidade justa ou injusta, solidária ou egocêntrica, emancipadora ou opressora. Quando o ser humano se faz realidade plenificante, temos autêntica realização. Mas, quando o ser humano se faz realidade degradante, não há realização. Há des-realização.

2. Tropeços
Temos tido um surto de neopragmatismo. Tudo é avaliado pelo critério da utilidade. Também o ser humano é medido pela sua utilidade ou inutilidade. Prevalece o utensilismo, a “utilizibilidade”, no dizer de Heidegger. Nesse caso, o ser humano pode valer menos que utensílio ou mercadoria. Por isso, idosos, enfermos, crianças e pobres são considerados não úteis, e até onerosos à sociedade. Abandoná-los e eliminá-los seria atitude pragmática.

O poder mundializado provocou deslocamento de metas. O grande objetivo não é a realização do ser humano, mas atingir resultados rentáveis. O ser humano está sendo substituído pela competitividade, pela velocidade da informação, pela rotatividade do capital financeiro, pelo dogma do mercado livre. O ser humano foi reduzido a personagem descartável.

A banalização do ser humano é motivo para desrespeitá-lo. Sempre que se pretende discriminar e explorar determinadas categorias humanas, começa-se por inferiorizá-las. O escritor Aldo Capitini disse: “Se os homens forem considerados como coisas, matá-los é um ruído, um objeto caído”. Nesse contexto é compreensível que o ser humano seja tratado com mórbida insensibilidade. Muitos já não se arrepiam com as chacinas semanais, com a impunidade cínica, com o trabalho escravo, com a prostituição de adolescentes, com a miséria indecorosa. A indiferença perante a demolição da vida humana é crueldade. Desbanalizar o ser humano é exigência preliminar para sua realização.

3. Des-realização
A realização do ser humano desenrola-se em situações concretas. A humanidade está sendo forçada a enquadrar-se na constelação neoliberal que tenta prevalecer no mundo. O economista Friedrich Hayek escreveu, em 1944, O Caminho da Servidão, onde condena a intervenção do Estado e reivindica liberdade total para o mercado. Hayek não quer o Estado que gaste com o bem-estar social. Mas quer o “Estado do liberalismo identificado com o livre mercado”, diz Hobsbawm. Estado que fortaleça as empresas e refreie movimentos de trabalhadores. Hayek recomenda o desemprego programado para que haja mão de obra excedente a disputar empregos. Com o desemprego epidêmico, os trabalhadores terão de aceitar salários achatados e suplicar aos generosos patrões que não os dispensem. É mesmo “O Caminho da Servidão”.

“Globalização” poderia significar sistema que contemplasse o universo e buscasse a realização de todos os seres humanos. Mas a atual globalização representa a minoria mundial que detém o poder econômico, político, científico, tecnológico, informático, e que impõe sua dominação à humanidade toda. É colonização global. E quem resistir a esse poderio mundializado, é sabotado, punido e excluído. A revista alemã especializada “Wirtschaftswoche” define bem essa globalização: “Produzir onde os salários são baixos, pesquisar onde as leis são generosas e auferir lucros onde os impostos são menores”.

Alarmados com os efeitos deletérios do neoliberalismo, muitos setores reclamam medidas que atalhem a pirataria mundial desse sistema. Para o sociólogo Alain Touraine, é hora de sair do “hiperliberalismo”, e não de ingressar nele. O sociólogo R. Kurz condena a “barbárie do mercado global”. O filósofo Rorty considera “as atuais desigualdades não compatíveis com a organização global”. O historiador Hobsbawm diz que a economia global abandona países pobres e pobres dentro dos países[1]. O neoliberalismo des-realiza o ser humano.

 4. Antropofagia
O ser humano possui tendências ambivalentes. Tende a acolher e a rejeitar, a amar e a hostilizar, a cooperar e a competir. Importa encaminhar os impulsos ambivalentes a finalidades construtivas. Alega-se que competir é “natural” ao ser humano. Mas a competição é sobretudo desenvolvida por um tipo de cultura que exacerba a rivalidade.

Autores estimularam a competição individualista. Maquiavel ensinou astúcia para a perpetuação no poder. Darwin usou a teoria da “seleção natural” para explicar o triunfo do mais apto sobre os fracos. Nietzsche proclamou a vitória do Super-Homem. Adler acentuou a psicologia da “Vontade de Poder”. B. F. Skinner é o pedagogo behaviorista da competição. Skinner inovou treinamentos psicológicos para padronizar o “comportamento humano”, no plano individual e no social. “Achamo-nos membros de uma cultura na qual a ciência floresceu e na qual os métodos da ciência vieram a ser aplicados ao comportamento humano”[2]. Os processos utilizados por Skinner são culturais. Verifica-se, pois, que o procedimento competitivo é produzido principalmente pelo tipo de cultura, e não pela programação genética, como declaram os cientistas do “Manifesto de Sevilha”, em 1986.

A competição racionalmente conduzida pode ser benéfica à sociedade. Mas a competição desenfreada gera grupos hegemônicos que controlam o Estado, a legislatura, a informação, e ampliam as desigualdades. Robert Kurz diz que a competição pode aumentar a produtividade, mas “desumaniza os homens, fazendo deles meras máscaras do dinheiro”[3]. É Zaratustra quem encarna a competição cruel e discursa em nome do Super-Homem: “Por que sois tão moles? Todos os criadores são duros. Ó irmãos: Tornai-vos duros!”[4]. A competição selvagem procria o Super-Homem e aniquila os fracos. É antropofágica.

5. Caos
A realização do ser humano enraíza-se em latência inesgotável. Todo ser humano contém vasto potencial energético. Paul Ricoeur pensa o ser humano como “Arché” e “Telos”, como matriz e finalização. Arché é fonte que espuma vitalidade. É o universo das pulsões, aptidões e inquietações. É a “Enérgueia” dos gregos, a “Evolução criadora” de Bergson, a “Libido” de Freud, a “Efervescência utópica” de Bloch, a “Ação comunicacional” de Habermas, a “Segunda, existência” de Lyotard. É Caos.

“Caos” fascina. Mitologicamente, Caos é força inordenada, nebulosa energética. Caos é dinamismo subterrâneo que turbilhona sem rumo. Caos é germinação fértil. Entre seus descendentes estão Gaia e Eros, a Terra e o Amor. A fecundidade da terra e a ebulição do amor. Segundo o Gênesis, a criação desdobra-se a partir do Caos. Deus vai configurando os potenciais de Caos. Originalmente, o ser humano é Caos. E do Caos informe irrompe a consciência, emerge a palavra, salta a liberdade. Aos poucos, o ser humano adquire Sopro de vida e Rosto de gente. O nascimento humano traz alegria porque criança é Caos. É novelo de apelos que brinca e rola pelo chão. E nada mais caótico do que a tempestuosa adolescência dos jovens. Sem Caos, a humanidade murcharia.

O ser humano carrega sempre Caos dentro de si. Indefinição, dúvidas, aspirações. Ninguém consegue ser totalmente lógico. O ser humano é Caos oscilante em busca de destinação humanizante. Para os donos do sistema dominante, Caos é a “desordem”, é o colapso da sociedade. Mas para a realização do ser humano, Caos é nascente oculta, é cabeceira de rio. Então, aparece “Telos”, que encaminha o tumulto caótico à estruturação dos grandes valores que vitalizam a humanidade. Dessa forma, integram-se Arché e Telos, Arqueologia e Teleologia, Caos e Escatologia. Caos adquire perfil através da cultura.

6. Tecido cultural
A realização do ser humano é fenômeno predominantemente cultural. A ação cultural transforma Caos em tecido sócio-histórico. Aqui, cultura é entendida em sentido antropológico. É tudo que resulta da ação humana. A cultura abrange ideias, ciência, tecnologia, filosofia, artes, linguagem, trabalho, costumes, crenças, valores, procedimentos, leis, organizações, profissões, sistemas políticos e econômicos.

Todos os grupos humanos possuem sua cultura. As culturas variam muito. Na Oceania, os samoanos têm maneira simples de viver. Os Manu são monogâmicos e competitivos. Os Arapesh são poligâmicos e solidários. Os Mundugumore são violentos e deixam os recém-nascidos sem mamar, por algumas horas, para que aprendam a reclamar e a lutar[5]. Entre os índios Akawaio, na Guiana, o xamã exerce função medicinal. A Métraux registra práticas antropofágicas entre os Tupinambá brasileiros. Mãe tupinambá recolhe sangue do inimigo, que vai ser devorado, e banha o mamilo de seu seio para que seu filhinho, ao mamar, deguste o sangue da vingança[6].

A diversidade de culturas desmente o “naturismo” daqueles que pretendem justificar práticas sociais como se fossem programadas rigorosamente pelas “leis da natureza”. A variedade de formas culturais demonstra que procedimentos, competição, sistemas políticos são criações humanas. São mutáveis e podem ser substituídas por outras formas culturais que respondam melhor às necessidades das populações.
  
7. Consciência antropológica
A realização do ser humano requer consciência antropológica. É a consciência que reconhece a densidade ontológica constitutiva do existente humano. A visão holística, iniciada pela filosofia grega, vê o ser humano integrado no universo. A integração da humanidade no cosmo não cancela a especificidade antropológica. O ser humano é saliência ontológica que interpreta o mundo, destina-se a si mesmo, planeja e organiza a sociedade.

A consciência antropológica preserva a identidade do ser humano e acentua o sentido da dignidade pessoal. Dignidade não é mercadoria. No mundo, a prioridade é o ser humano, e não o mercado, a globalização, a competição. Cabe à humanidade decidir o rumo e o conteúdo de sua realização. Não pode submeter-se aos bilionários da riqueza, ao Banco Mundial e FMI, que pretendem determinar o que a humanidade deve ou não deve fazer. É a humanidade que tem o direito de dizer aos poderosos o que devem respeitar e o que devem cumprir. Para isso, é preciso haver consciência antropológica madura.

 8. Maturação
O homem é projeto em seu próprio ser. É ser iniciado, mas inacabado. Projeto é proposta arquitetural da existência humana. O ser humano pode planejar sua vida, o que não acontece com coisas, plantas e animais. E deve incorporar as conquistas científicas e tecnológicas num projeto consistente que englobe a realização de todos os povos. Por ser projeto, o homem não é saturado. “Não é compacto”, diz E. Bloch. Pela inventividade, o ser humano pode até replanejar a vida. Não é obrigado a continuar a ser o que era. E pode começar a ser o que não era.

A maturação concretiza o projeto humano. Leva o ser humano a crescer, a participar e a buscar sentido para a vida. O vazio angustia porque é ausência de sentido. Gebsattel interpreta o vazio. “Não é que experimento o vazio. Eu sou o vazio”, diz a personagem. “A realização da existência é o que me foi tirado”[7]. O significado realiza o ser humano. O vazio desrealiza-o.

A maturação do projeto humano abrange a totalidade da vida. Amadurece as dimensões somática, psíquica, intelectual, sexual, dialogal, ecológica, econômica, política, estética, lúdica, ética, social e religiosa. Maturação é processo interminável. Quem desiste de realizar-se, desiste de viver. Por esse motivo, o ser humano lúcido sente-se “insatisfeito”. Jamais inteiramente feito. É sinal de maturidade.

9. “Tessitura carcerária”
Michel Foucault aponta três símbolos de inclusão na exclusão: o leproso, o louco e o preso. Em Caminho do Calvário, o pintor Brueghel mostra o leproso acompanhando Jesus, de longe. O louco é colocado “no interior do exterior”. O preso representa o internamento que elimina os “associais” e nocivos. “A exclusão tranca-os”[8].

Foucault analisa, com argúcia, a “tessitura carcerária da sociedade” que fabrica o “indivíduo disciplinado”. A rede carcerária aprisiona por meio de normas, tradições, instituições, isolamento, coação, pelo poder econômico, político, científico, industrial, pedagógico, informático, parlamentar, policial, e pela ortodoxia religiosa. A prisão de “delinquentes” é apenas um ponto no sistema de aprisionamento. A “tessitura carcerária” regulamenta a sociedade através de mecanismos sutis e invisíveis. Foucault fala na “cidade carcerária” constituída por dispositivos que exercem o poder de “normalização”[9]. É a cidade regida por um centro de observação, que vigia sem ser vigiado. É a cidade “Panóptica”, que vê a todos e por todos os lados. Mas a população não consegue descobrir a fonte de controle “carcerário” que a mantém aprisionada.
  
10. Des-aprisionar
Há setores que apregoam o “consenso”, o “acordo”, o “pensamento único”, com o intuito de eliminar resistências, aglutinar forças, casar interesses e conquistar adeptos. O filósofo J. F. Lyotard escreve ironicamente: “Pelo consenso, somos rogados a contribuir para a regulamentação das injustiças tão abundantes no mundo”[10]. Isto é forma de aprisionamento. Deve-se promover o “Dissenso”, de que fala Bobbio, para esfiapar a “tessitura carcerária” do consenso. E promover o “Desacordo” para quebrar o acordo. Discordar é forma de desaprisionar a sociedade.

A globalização vigente concentra riquezas, alastra desemprego e miséria. E pretende encaixar a humanidade na prisão perpétua do modelo neoliberal. A consciência histórica há de rebelar-se para desaprisionar o ser humano, “encarcerado” pela modernidade do neoliberalismo.

Um dos piores encarceramentos é a desigualdade criminosa que perpetua a estrutura escravista em estilo moderno. A desigualdade mantém a “ordem social” em que os mais fracos são prisioneiros dos mais fortes. A crueldade do chicote que sangrava a carne do escravo foi substituída pela “tessitura carcerária” do desemprego, da fome, do tráfico sexual, da demissão voluntária, da informação manipulada. Os escravos gabões matavam-se engolindo a própria língua, como protesto[11]. Todos aqueles que não podem fazer valer a palavra de seus direitos são obrigados a engolir a língua. Apressemos o dia em que nosso povo desate a língua, entrelace as mãos, erga a fronte, e exija que lhe que seja devolvida a humanidade expropriada. E o ser humano se desaprisione para realizar-se.

11. Paradigma planetário
Realização é solidariedade. E solidariedade é inclusão do “Outro”. O Outro instaura a alteridade, a intersubjetividade. Diz Lévinas: “A presença do Outro é fonte de toda significação”[12]. E escreve Gargani: “O Outro nos acompanha, mesmo sem marcar encontro, à semelhança da lua e do sol, que acompanham nosso caminho”[13].

Solidariedade pode significar compreensão, comiseração e até condolências. Mas significa, principalmente, articulação de vidas e reciprocidade de esforços para a maturação de pessoas, grupos e povos. A solidariedade madura inclui, em sua própria realização, a realização do Outro.

A solidariedade entre empobrecidos é insubstituível para que se emancipem da “tessitura carcerária” que os mantêm submissos e indefesos. Os poderosos podem ser solidários com os pobres. Mas o evangelho mostra que é raro. Deve-se ativar a solidariedade que soma a criatividade e ajunta as possantes esperanças dos chamados “fracos”.

Solidariedade é compromisso radical com a justiça. A justiça é urgência neste país rasgado pela injustiça crônica. Ser solidário é arriscar-se pelos irmãos e carregar a cruz da justiça nos ombros esfolados pela injustiça. Solidariedade não é estender o manto da paz sobre a injustiça para tranquilizar a consciência nacional. Solidariedade, hoje, é lutar obstinadamente para que a justiça garanta a realização de milhões de brasileiros subumanizados.

A solidariedade autêntica busca a realização de todos os seres humanos, em qualquer parte do mundo: Richard Rorty propõe a solidariedade “etnocêntrica”[14]. É solidariedade restrita a um grupo. Mas a verdadeira solidariedade é antropogenética. Esta solidariedade é a genuína “Globalização” a ser promovida. É o paradigma planetário para a realização da humanidade em nosso tempo.

12. Autogênese
Quando a espécie humana surge no mundo, inaugura-se a auto-evolução. O ser humano realiza-se a si mesmo. E autogenético porque tem capacidade para emancipar-se e criar-se. Diz Habermas: “O ato de autorreflexão que ‘muda uma vida’ é movimento emancipatório”[15]. Milhões de seres humanos são autofágicos porque roídos pela fome entranhada em suas vidas. É urgente realimentar a autogênese para barrar o avanço autofágico, e garantir a realização humana.

A criatividade é inerente a todo ser humano, e não apenas talento de alguns privilegiados. Também os espoliados são criadores. Reprimir ou impedir a criatividade é “encarceramento” ontológico. Segundo o Banco Mundial, no mundo há 1 bilhão e 300 milhões de pobres que vivem apenas com 1 dólar por dia. Na consciência dessa imensa humanidade encarcerada pela miséria, ressoa o testemunho de Bloch: “Mas eu fui feito para criar”[16]. E Hobsbawm avisa: “Nosso mundo corre o risco de explosão e implosão. Tem de mudar”[17]. No dia em que a criatividade autogenética de mais de 1 bilhão de “fracos” se desaprisionar, o mundo mudará. Ou então estalará.

 13. Têmpera indobrável
Realização não é produto pré-fabricado. É criação dialética. Realizar-se exige a coragem de viver conflitos. A coragem empenha vidas e não apenas palavras. Coragem tem o espírito de vanguarda que desbrava trilhas e coloca a pessoa na linha de frente. Ninguém se realiza escondendo-se na retaguarda. A coragem espanta o medo e impulsiona a realização.

Coragem não é violência. Coragem está na linha de Eros, da vida, da criatividade. A violência descende de Tânatos. É aliada da morte, por isso, degrada, arruína, ensanguenta. O corajoso suscita solidariedade, o violento impõe subserviência.

Coragem não se confunde com poder. Coragem é o vigor da vida em favor do crescimento da humanidade. O poder é a força do mando em favor da supremacia. O poder apoia-se na riqueza, na política, nas armas. A coragem entronca-se na verdade, na justiça e na dignidade. Por isso os corajosos arriscam-se e os poderosos protegem-se.

Paul Tillich diz que a coragem é “ontológica”, porque é constitutiva do ser humano. Coragem é a fibra de quem não perdeu a humanidade. Todos podem ter coragem. Mas são os pobres que, de modo especial, precisam de coragem porque são a humanidade desnuda. A coragem é a força que resta aos que perderam tudo ou quase tudo.

A coragem é têmpera indobrável. Gera profetas e mártires. Quem tem coragem recusa-se a capitular e a fugir. E reafirma-se com a palavra de Bloch: “Mas eu quero ser”. A coragem faz dos seres humanos “paráclitos”, advogados, defensores dos aprisionados. E faz testemunhas cristofânicas porque, sempre que se defende o Outro encarcerado, defende-se o próprio Cristo.

Escreve Ernst Bloch: “A vida está entre nossas mãos”[18]. Que faremos de nossa vida? A coragem não a deixe cair no chão. Cristo nos ajude a amadurecer a vida, e a reparti-la solidariamente para a plena realização

REFERÊNCIAS

[1] Hobsbawm, E., Era dos Extremos. O Breve Século XX, 1996, p. 551.

[2] Skinner, B. F., Ciência do Comportamento Humano, Edart, p. 250.

[3] Kurz, R., O Colapso da Modernização, 1993, p. 80.

[4] Nietzsche, Zaratustra, III – 29.

[5] Mead, M., El Hombre Y La Mujer, trad. p. 50.

[6] Métraux, A., Religions et Magies Indiennes, Gallimard, 1967, p. 65.

[7] Gebsattel, F., Antropologia Medica, Rialp, trad., p. 59.

[8] Foucault, M., Histoire de Ia Folie, Gallimard, 1972, pp. 22, 92.

[9] Foucault, M., Vigiar e Punir, trad. 1991, pp. 268, 269.

[10] Lyotard, J. F., Moralités Posmodernes, Galilée, 1993, p. 182.

[11] Cunha Carneiro, M., Antropologia do Brasil, ed. bras. p. 132.

[12] Lévinas, E., Totalité et Infini, Nijhoff, 1968, p. 273.

[13] Gargani, A. G., Que Peut Faire Ia Phisosophie, Paris, 1989, p. 137.

[14] Rorty, R., Objectivisme, Relativisme et Verité, Puf, 1994, p. 39.

[15] Habermas, J., Conaissance et Intérêt, trad. Gallimard, p. 245.

[16] Bloch, E., L’Esprit de L’ Utopie, trad. Gallimard, p. 204.

[17] Hobsbawm, E., op. cit., p. 562.

[18] Bloch, E., op. cit., p. 279