Por Clóvis Aparecido Damião
INTRODUÇÃO
O papa João Paulo II, no início de sua Encíclica Fides et
Ratio, afirma que “a fé e a razão constituem como que as duas asas pelas quais
o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade”, ressaltando com
isso que a necessidade de cultivar a fé se fundamenta na busca da verdade. O
grande desejo do ser humano é a realização e a felicidade. Esses dois elementos
estão presentes nos sonhos e projetos de todas as pessoas, claramente visíveis
em nosso tempo. Da busca de sua realização, em nossa época, muitos passam a
viver experiências religiosas as mais diversas, que na sua percepção oferecem
soluções para seus problemas e inquietações. Entretanto, nem sempre a verdade é
o objetivo principal desses grupos religiosos. A busca de sentido para a vida e
de transcendência também muitas vezes se reduz à ilusão do consumismo, do
poder, do prazer e de coisas materiais, que, transformados em absoluto, tendem
a produzir frustração, dentre outros problemas. A cada dia também cresce o
número de pessoas que se declaram sem religião e que vivem sua religiosidade ao
seu modo.
Por isso, torna-se ainda mais atual o tema da fé cristã para
uma reflexão que desperte a consciência do itinerário de fé desejado por
Cristo, que é a própria Verdade, o Caminho e Vida (cf. Jo 10,10). De outubro
desse ano a outubro de 2013, o papa Bento XVI nos propõe o Ano da Fé, em
comemoração ao cinquentenário do início do Concílio Vaticano II. A Carta
Apostólica Porta Fidei, em que ele proclama tal ano, destaca “a necessidade de
redescobrir o caminho da fé para fazer brilhar, com evidência sempre maior, a
alegria e o renovado entusiasmo do encontro com Cristo” (n. 2).
Estamos diante de uma pluralidade de modelos de fé e, por
isso mesmo, faz-se necessário fortalecer a convicção naquilo que acreditamos.
Quando questionada sobre sua fé, Marta responde a Jesus por ocasião da morte de
Lázaro (Jo 11,19-27): “Sim, Senhor, eu creio firmemente que Tu és o Messias, o
Filho de Deus que devia vir ao mundo”. É à luz dessa proclamação de fé que o
cristão é convidado a refletir sobre a fé cultivada em seu interior. Marta não
apenas responde que crê, mas afirma que crê firmemente, isto é, tem convicção
do que acredita. Com o desejo de propiciar aos cristãos tal convicção, a Igreja
convida todos a dedicarem um ano inteiro para falar da fé e aprofundá-la em
seus corações.
Professar a fé numa época de crises
As Diretrizes da Ação Evangelizadora no Brasil 2011-2015
afirmam que estamos não apenas numa época de mudanças, mas numa mudança de
época (cf. n. 19), o que ocasiona tempos desnorteadores, inclusive no âmbito da
fé. As pessoas são estimuladas a viver a fé de forma intimista, pois “já não é
mais a pessoa que se coloca na presença de Deus como servo atento, mas é a
ilusão de que Deus pode estar a serviço das pessoas” (n. 22). Essa ideia
errônea do cultivo da fé não se coaduna com a proposta libertadora de Jesus,
que não pregou uma fé que deve esperar recompensas e soluções imediatas, mas o
compromisso com o Reino de Deus, mesmo se necessário passar pela cruz.
O próprio papa alerta sobre essa profunda crise que faz com
que o homem contemporâneo sinta necessidade de dar razões da sua fé. Sua
intenção é fazer com que a Igreja ofereça uma vez mais a oportunidade de todo
cristão perceber a força e a beleza da fé (cf. Porta Fidei, n. 04). Com esse
intuito, a Igreja, enquanto povo de Deus,terá oportunidade de buscar, com
empenho e dedicação, a conversão necessária para a vivência de uma fé madura e
consciente. A pergunta que deve ser feita, nessa perspectiva, é: o que impede que
os cristãos de hoje atinjam essa maturidade na fé? Para responder a essa
pergunta, é necessário propor outra: quem são os cristãos de hoje?
Ao destacar o tema “Iniciação à Vida Cristã”, os bispos do
Brasil, reunidos na 47ª Assembleia em Itaici – SP, no ano de 2009, refletiram
sobre a urgência de evangelizar aqueles cristãos que já receberam os
sacramentos da Iniciação Cristã, mas não foram suficientemente evangelizados
(cf. Iniciação à Vida Cristã, n. 24). Essa evangelização só é eficaz se provoca
uma adesão pessoal a Jesus Cristo, fortalecendo a fé e dando razões para o seu
cultivo.
Na atual conjuntura, nesse contexto majoritariamente urbano,
os cristãos que frequentam as igrejas são pessoas muito diversas umas das
outras, o que torna a Igreja de hoje bem mais diversificada, em todas as suas
áreas pastorais, que no passado. Por isso, a necessidade de nova evangelização,
com novo ardor e entusiasmo sempre renovado, capaz de levar o discípulo
missionário a “sair ao encontro das pessoas, das famílias, das comunidades e
dos povos para lhes comunicar e compartilhar o dom do encontro com Cristo”
(Doc. de Aparecida, n. 548).
Essa crise de fé atual atinge toda a sociedade. Na Igreja,
são muitos os agentes de pastoral que não conhecem profundamente sua própria
fé. Fora da Igreja, há tantos homens e mulheres sedentos do sagrado, mas que
não enxergam a necessidade da vida eclesial. No campo da política e da cultura,
um grande número de pessoas vê a Igreja de forma negativa, como instituição
arcaica e ultrapassada. Paralelas a isso, inúmeras denominações cristãs
proliferam, na linha da economia de mercado, oferecendo às pessoas solução para
todos os seus problemas. Tais denominações prometem o que, na verdade, Deus
nunca prometeu e criam um novo protótipo de cristianismo, desvinculado da
vivência comunitária. São esses os cristãos de nosso tempo. Grande parte deles
indiferentes à Igreja ou até contrários a ela.
Voltando à pergunta inicial, a maturidade na fé dos cristãos
de hoje só será possível à medida que nossas comunidades se tornarem exatamente
aquilo que deveriam ser: educadoras da fé. Diversos desafios se apresentam
diante da ação evangelizadora, porém, o progresso da Teologia tem colaborado
para que a fé não seja apenas acolhida, mas refletida e abraçada com convicção.
É claro que, por outro lado, faz-se necessário recordar que a fé é sempre
busca, procura da verdade. Por isso, recorda o papa João Paulo II que “a fé diz
respeito a coisas que ainda não são possuídas, pois se esperam e não se veem
ainda, senão como que ‘num espelho, de maneira confusa’ (1Cor 13,12)”
(Catechesi Tradendae, n. 60). Desse modo, o cristão nunca estará de posse plena
da verdade que ele busca pela fé. Mesmo assim, o encontro pessoal e verdadeiro
com Cristo lhe dará garantias e esperança de se aproximar sempre mais dessa
verdade.
O desafio da ação evangelizadora e do ministério pessoal de
cada discípulo missionário adquire maior dimensão nesse contexto. Isso porque
torna-se necessário oferecer os conteúdos da fé para aqueles cristãos que não a
vivem suficientemente, oferecer também tais conteúdos para os não cristãos que
a querem conhecer e, talvez o mais desafiador, oferecer razões para que aqueles
que abandonaram a fé ou não se importam com ela percebam sua real necessidade.
Certamente será nessa direção que toda a Igreja será conclamada a refletir no
Ano da Fé, pois “não há outra possibilidade de adquirir certeza sobre a própria
vida senão abandonar-se progressivamente nas mãos de um amor que se experimenta
cada vez maior, porque tem sua origem em Deus” (Porta Fidei, n. 07).
A fé professada ao longo da história
Diversas vezes já foram recordadas as palavras do papa Bento
XVI, que afirma que “não se começa a ser cristão por uma decisão ética ou uma
grande ideia, mas pelo encontro com um acontecimento, com uma Pessoa, que dá um
novo horizonte à vida e, com isso, uma orientação decisiva” (Documento de
Aparecida, nn.12 e 243).
Foi o encontro com essa Pessoa que despertou e fortaleceu a
fé de inúmeros homens e mulheres que, ao longo da história, sustentaram e
edificaram a Igreja de Jesus Cristo. É ele essa Pessoa que, na plenitude dos
tempos, veio ao encontro da humanidade para dar-lhe sentido e orientação,
propondo a mensagem do Reino.
Não se pode falar de fé madura e consciente sem se recordar
dos primeiros cristãos. Tanto os textos canônicos como aqueles que vieram
depois descrevem a força e o testemunho de milhares de pessoas que encontraram
em Jesus Cristo razão para suas vidas. Os apóstolos e os discípulos viveram sua
fé com tamanha profundidade que – na sua maioria – perderam a vida por não
recusarem negar a fé que abraçaram. Entre os diversos mártires da Igreja,
recordamos os próprios apóstolos e Estêvão, bem como os primeiros bispos de
Roma, mortos brutalmente por causa da intolerância religiosa de seu tempo.
Deles, Tertuliano, um dos pais da Igreja, dizia que o seu sangue era o adubo
que fazia crescer a Igreja. Pela fé, esses homens deixaram tudo para seguir
Jesus Cristo, e a comunhão de vida com Jesus fez deles verdadeiras testemunhas
do Evangelho.
Nos sete primeiros séculos da era cristã, diversos homens de
Deus tornaram-se, também, exemplos de fé e santidade pela coragem em defender a
Igreja e elaborar os conteúdos da fé que já era vivida, mas que, aos poucos,
precisou ser sistematizada. São os chamados padres da Igreja. Entre eles,
pode-se citar Inácio de Antioquia, Irineu de Lyon, Hipólito de Roma, Justino,
Cipriano, Atanásio, João Crisóstomo, Agostinho e tantos outros. Seus escritos
demonstram a profundidade de sua fé e como se tornaram fiéis defensores da
mensagem cristã.
Além deles, como exemplos de fé podem-se encontrar
belíssimas histórias de vida de homens e mulheres que se entregaram aos
monastérios, desde Santo Antão até São Bento de Núrsia. Vale recordar, ainda, o
exemplo de santos e santas como São Francisco de Assis e São Domingos, e mais
tarde Santa Rita de Cássia, São João da Cruz e Santa Tereza D’Avila, Santa
Terezinha do Menino Jesus e tantos outros. Em nossos dias, os exemplos de
Tereza de Calcutá e João XXIII são sempre recordados como motivação para viver
a interação fé e vida.
É fundamental recordar, também, como testemunhos de fé, a
vida de muitos anônimos que, incansavelmente, por todo o canto do mundo, doam
suas vidas na evangelização, na catequese e na pastoral, sendo perseguidos e,
muitas vezes, mortos por crerem em Jesus Cristo. Esses homens e mulheres de
nosso tempo, bem como todos os outros, de todos os tempos, recordam com a
própria história de vida que, com a fé, é possível dar pleno sentido à
existência humana. Desse modo, é possível olhar para a história e enxergar a
ação do Espírito de Deus, que continua inspirando homens e mulheres a
fundamentarem sua fé no amor de Jesus Cristo e, nele, encontrarem alento para
suas vidas.
Professar a fé hoje: De que modo e para quê?
O papa Bento XVI recorda que os primeiros cristãos eram
incentivados a aprender de memória o Credo, como oração diária, a fim de que
não se esquecessem do compromisso que haviam assumido com o batismo (Porta
Fidei, 09). Diversas pessoas, atualmente, ainda mantêm o Credo nas suas orações
cotidianas. No entanto, nas celebrações eucarísticas, a Profissão de Fé nem
sempre cumpre seu papel, pois professam-se as verdades da fé sem se pensar
naquilo que elas expressam. Como todos sabem de memória, há o perigo constante
de se fazer a Profissão de Fé sem a compreensão mínima do seu significado. Por
isso, é importante recordar para que o cristão é convidado a professar a sua
fé.
Primeiramente, é bom lembrar que os primeiros cristãos não
apenas viviam sua fé, mas a testemunhavam com as palavras e com a vida. O que
fez o Evangelho se espalhar por todos os cantos foi a convicção com que eles
partilhavam com os outros o que a nova fé havia causado em seus corações. Um
segundo aspecto fundamental que deve ser lembrado é que o testemunho sincero de
cada cristão converte outros, mas fortalece ainda mais a convicção de quem
anuncia. Aquele que evangeliza também é evangelizado por suas próprias
palavras, pois é o Espírito de Deus que age nele e por ele. Além disso, um terceiro
motivo para o cristão professar a sua fé deve ser a recordação de que o Deus da
revelação é um Deus que se abre à humanidade. Por isso, abrir-se para oferecer
aos outros a oportunidade de experimentar o que o próprio evangelizador já
experimentou é, na verdade, imitar o próprio Deus na sua abertura à humanidade.
Entretanto, também é fundamental questionar o modo como se
deve professar a fé. Já recordamos o modo mecânico com que, muitas vezes, o
Credo é proclamado nas celebrações eucarísticas. Por isso, alguns elementos são
essenciais na vida do cristão que deseja viver sua fé com autenticidade e, por
isso, sente o desejo de proclamá-la aos outros. Entre esses elementos,
destacamos: a participação consciente na liturgia em comunidade; a oração
pessoal constante e perseverante; o contato direto com a Palavra, como fonte
para toda a vida, e a partilha daquilo que cada um experimentou de modo a gerar
nos corações o desejo de conhecer mais e melhor a mensagem de Jesus Cristo.
O Ano da Fé como tempo de graça
Assim termina o papa sua Carta Apostólica: “à Mãe de Deus,
proclamada ‘feliz porque acreditou’ (cf. Lc 1,45), confiamos este tempo de
graça” (Porta Fidei, 15). Sendo assim, é desejo do papa e de toda a Igreja que
o Ano da Fé seja tempo de graça para todos. A graça de Deus, acolhida na vida
do cristão, deve levá-lo a compreender sempre mais e melhor o amor generoso de
Deus, que ama o ser humano na gratuidade. Embora o cristão tenha capacidades
para perceber os sinais de Deus em sua história, é sempre Deus que toma a
iniciativa. Isso é graça.
Os cinquenta anos do início do Concílio Vaticano II que
inspiram esse Ano da Fé devem nos recordar a dinamicidade da Igreja, que,
guiada pelo sopro divino, continua atualizando no mundo a mensagem salvífica de
Cristo. Nesses cinquenta anos, grandes transformações aconteceram na Igreja,
observadas não apenas em suas estruturas, mas nas comunidades vivas de fé. Cada
vez mais, o cristão é chamado a viver e a testemunhar a sua fé com ardor,
recebendo da própria Igreja oportunidades de se formar e de se preparar para a
missão. Olhando para essa transformação, é possível novamente afirmar que tudo
é graça de Deus para a humanidade.
Por outro lado, celebrar o Ano da Fé como tempo de graça não
será apenas oportunidade de louvar a Deus pela graça da fé que ele suscitou em
nós. Será também ocasião para um profundo exame de consciência, pois o ser
humano necessita constantemente de conversão, já que o pecado continua a ser
obstáculo ao acolhimento da graça de Deus. Diante das inseguranças do mundo
moderno, o cristão parece cada vez mais não conseguir separar ocasiões de
santidade das ocasiões de pecado, pois os valores cristãos constantemente são
colocados de lado. Certamente é por isso que a fé tem sido tão questionada.
Nesse sentido, o papa reforça que, “ao longo deste Ano,
manteremos o olhar fixo sobre Jesus Cristo, autor e consumador da fé”, para
quem deve convergir todo trabalho evangelizador da Igreja. Ao reforçar a fé de
cada cristão, a Igreja deverá apresentar a proposta de Jesus Cristo de modo
cada vez mais claro e convincente, pois tal proposta fará brotar a fé no
coração daqueles que ainda não o conheceram e fortalecerá a fé naqueles que
ainda não o compreenderam como o Deus que se faz humano para se aproximar de
nós.
Conclusão
Numa das vezes em que Jesus trata da fé como tema de seus
ensinamentos, ele certamente deixa seus discípulos espantados por afirmar que a
fé deles era menor do que um grão de mostarda (Mt 17,20). Essa observação Jesus
não faz a respeito de pessoas que ainda não tinham ouvido seus ensinamentos,
nem a respeito de pessoas que o haviam rejeitado. Ele fala aos seus próprios
discípulos. Por isso, suas palavras são diretamente aplicáveis aos cristãos de
hoje. Enquanto imaginarmos que a evangelização é para aqueles que estão fora da
Igreja, perderemos a oportunidade de amadurecer na fé, pois Jesus falava
primeiro aos seus discípulos para depois falar aos outros. Toda mensagem de
Jesus, da qual a Igreja é portadora, deve antes ser oferecida a nós cristãos,
para que, cultivando a fé no coração dos outros com nossas palavras e nosso
exemplo de vida, possamos transmiti-la bem aos outros.
BIBLIOGRAFIA
BENTO XVI. Carta Apostólica sob forma de Motu Proprio Porta
Fidei. Documento 195. São Paulo: Paulinas, 2011.
BLANK, R. Ovelha ou Protagonista? A Igreja e a nova
autonomia do laicato no século 21. São Paulo: Paulus, 2008.
CELAM. Documento de Aparecida. 2ª ed. Brasília: CNBB; São
Paulo: Paulinas, Paulus, 2007.
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Brasil 2011-2015. Documentos da CNBB 94. Brasília: Edições CNBB, 2011.
______. Iniciação à Vida Cristã. Um processo de Inspiração
Catecumenal. Estudos da CNBB 97. Brasília: Edições CNBB, 2009.
JOÃO PAULO II. Carta Encíclica Fides et Ratio. Sobre as
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______. Exortação Apostólica Catechesi Tradendae. Documento
93. São Paulo: Paulinas, 2011.
PAULO VI. Exortação Apostólica Evangelli Nuntiandi. Sobre a
Evangelização no mundo contemporâneo. Documento 85. São Paulo: Paulinas, 2011.
*Fonte: Vida Pastoral (o texto não está na íntegra, houve um pequeno recorte)
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