A psicanálise, as depressões, a culpa e o perdão
A psicanálise pode ajudar o cristão a depurar e amadurecer
sua fé e a não deslocar para Deus e a religião as fantasias, frustrações
infantis, neuroses, excessos de culpa, rigidez e de moralismo.
1. A psicanálise e as depressões
É muito comum, como psicanalista, receber no consultório
pessoas arrasadas pela angústia e em estado depressivo considerável. Nos dias
de hoje, as depressões assolam jovens, adultos, idosos (vinte vezes mais comum
nessa faixa etária) e até mesmo crianças… As depressões são distúrbios que
muitas vezes necessitam de auxílio medicamentoso por se relacionarem às
alterações bioquímicas passíveis de ser harmonizadas com psicofármacos. Porém,
sempre recomendo aos meus clientes que naveguem em águas mais profundas e
aproveitem o momento para uma análise, ou seja: para uma viagem ao interior de
si mesmos.
Os remédios bloqueiam os sintomas ao harmonizarem a
bioquímica alterada. Porém, além de fatores genéticos, a pós-modernidade com
seu individualismo, competitividade, afrouxamento dos laços afetivos,
neoliberalismo, associada à história singular de cada sujeito, vai definir a
saúde ou doença e o grau de saúde psíquica das pessoas. Nos conflitos
psicológicos, os medicamentos pouco podem fazer… Muitas pessoas chegam
desesperadas aos consultórios e demandam verdadeiros milagres através dos
psicofármacos. É preciso contextualizar e ponderar a complexidade do distúrbio
e não embarcar no imediatismo, outro engodo de nossos tempos.
Ajudar o cliente a criar uma demanda, uma questão, uma
pergunta fundamental, uma dúvida sobre suas neuróticas certezas, um hiato no
seu discurso projetivo e muitas vezes sem faltas é tarefa fundamental na
tentativa de diminuir sua alienação a respeito de si mesmo. Seria aparentemente
muito mais fácil buscar solução que venha de fora, sem esforço ou trabalho
psíquico, sem ter de tocar em suas feridas, sem ter que revirar a intimidade.
Apesar de ser inerente ao ser humano, a ambivalência de
sentimentos nas pessoas depressivas chega a extremos, desencadeando a doença.
As perdas reais e imaginárias que o deprimido passa ao longo de sua vida,
principalmente em sua infância e adolescência, o conduzem processualmente à
depressão. Essas perdas e falta de cuidados, a maioria inconscientes, levam o
sujeito a fantasias de destrutividade e retaliação em relação às pessoas
amadas. Odiar e destruir, inconscientemente, aqueles que mais amamos é um
conflito árduo para nossas frágeis almas.
Os depressivos geralmente são muito exigentes consigo
próprios e têm ideais muitos altos, já “engoliram muitos sapos”, justamente das
pessoas que mais amam, e estão cheios de mágoas e ressentimentos.
Processar lentamente essas feridas estampadas e escondidas
pela própria depressão é desafiador, porém grandemente libertador. E a energia
psíquica envolvida no conflito poderá ser utilizada para outros fins, melhores
para o sujeito e a sociedade.
Uma análise existe para processar todos esses conflitos
inconscientes, uma pessoa poderá reviver sem julgamento do analista, sua dor,
mágoa, ódio, sua destrutividade.
2. A psicanálise, a culpa e o perdão
Nessa etapa, gostaria de abordar de onde vem boa parte de
nossos sentimentos de que estamos em pecado ou em dívida com as pessoas, com o
mundo, com Deus.
Nós temos em nossa consciência, um espaço de liberdade e discernimento
a nos implicar em nossas ações e escolhas. Porém o inconsciente se interliga ao
consciente de forma inextricável e constitutiva da consciência. Isso nos leva
ao raciocínio de que nossa liberdade é apenas parcial no que se refere às
nossas condutas. Muito daquilo que denominamos pecado é na verdade limitação
histórica, falta de cuidados recebidos, falta de amor que acirra nossa
destrutividade e culpa inconsciente, e não pecado.
A criança e o adolescente, ao se tornarem adultos, carregam,
independentemente de terem alguma religião, mais ou menos grau de culpa. Isso
se dá pelas seguintes situações vividas por todos nós no amadurecimento
emocional (apenas enumerando algumas delas):
* Culpa
por ter desejado ser exclusivo no desejo e na vida da mãe (e os desejos
inconscientes não morrem nunca).
* Culpa
por ter desejado, na fantasia, destruir o seio e o corpo materno e a própria
mãe como pessoa, por ter sido frustrado no desejo de exclusividade e por ela
não ter satisfeito todos os nossos desejos e necessidades.
Mediante esse rosário de culpas a criança, para não
sucumbir, elabora fantasias e atos reparadores. O amor e a sobrevivência dos
pais são fundamentais para que as reparações inconscientes possam integrar
melhor o seu amadurecimento. A reparação pode acontecer de várias formas,
sadias e neuróticas, e pode nos transformar em adultos éticos, criativos,
bondosos, sublimes ou submissos, excessivamente escrupulosos, obsessivos etc.
Tudo isso movidos pelo desejo de reparação interna e externa.
Quando, na vida adulta, alguma situação apresenta semelhança
com aquilo já vivido, o inconsciente se manifesta e vem à tona algum rastro ou
marca de culpa em nossas consciências. A angústia sobrevém e sentimos
necessidade de dar um nome ao vivido. Esse descompasso, essa inadequação, essa
coisa fora de lugar que incomoda e gera desconforto costumamos associar, em
nossa cultura judaico-cristã, a pecado.
Há Igrejas e modelos de Igrejas que tentam trabalhar a
pessoa, bem ou mal intencionadas (não cabem aqui julgamentos), pelo prisma do
moralismo, do dogmatismo e fundamentalismo. O ser humano, nesse estado, acaba
perdendo muito de sua espontaneidade e criatividade, além da capacidade de
crítica. Movidas e freadas pela culpa inconsciente, mais vivida na consciência
como pecado, as pessoas se tornam massa de manobra, escravas de líderes
carismáticos, de normas e regras farisaicas. E elas passam a tratar o próximo
com enorme severidade e rigor, como seus superegos as tratam.
Escutando tantas pessoas todos os dias e há tantos anos em
consultório, a cada dia mais me convenço que a culpa mal trabalhada leva não
somente a excesso de escrúpulos, mas a neuroses, precipita doenças como a
síndrome do pânico, obsessões e até mesmo graves doenças psicossomáticas. Mas,
principalmente, conduz o ser humano a uma infelicidade crônica, a um boicote
quanto a uma boa qualidade de vida.
A misericórdia que Jesus teve e tem por todos nós – filhos
pródigos e herdeiros de nosso próprio inconsciente e ideologias – deveria ser
emblemática para nossas condutas quanto a nós mesmos e aos outros. Realmente,
não sabemos com exatidão aquilo que fazemos conosco e com o próximo. Muito
menos sabemos as reais motivações quanto às condutas dos outros em relação a
nós mesmos.
O amor a Deus e ao próximo e o maior conhecimento e amor por
nós mesmos são as principais fontes de restauração aos danos reais e
imaginários e às culpas reais e imaginárias que carregamos. São as principais
formas de restaurarmos nosso ser e aqueles que amamos.
3. Psicanálise,
perdão, culpa e religião
Falar a respeito de pecado e perdão sempre tocou o
inconsciente e as emoções das pessoas. Em dias atuais, é comum a palavra
“pecado” provocar reações díspares. Em um extremo pode mobilizar tristeza,
pânico, graves inibições. No polo oposto poderá sobrevir deboche, indiferença,
pois, para algumas pessoas, falar sobre esse tema é “careta”, ultrapassado.
Nesse grupo existe uma subdivisão interessante: há aqueles
que se afastam completamente dessa questão por não acreditarem em nada que se
refira à religião e aqueles que não suportam sequer escutar a palavra “pecado”.
Associam-na a sacrifício e penitências absurdas. De seus inconscientes,
retornam cenas de abuso de poder dos pais e de igrejas. Percorreram um árduo
caminho para se libertarem das amarras do castigo, do medo e, após alto custo
emocional e tortuoso caminho, descobriram, enfim, o amor de Deus.
Penso que nos extremos desse grupo pode existir como pano de
fundo, um intenso sentimento de culpa inconsciente, forjado na infância dessas
pessoas e não trabalhado por elas. Os pais, as famílias, as igrejas podem
colaborar e muito para evitar esse excesso de culpa, que paralisa o ser humano.
As crianças leem no comportamento e no inconsciente dos pais como elas devem
ser para se sentirem amadas. E para angariar estima e amor se moldam no que
imaginam corresponder ao desejo deles. Muitas não puderam expressar e
reprimiram excessivamente suas raivas, mágoas e a sexualidade. Para essas
pessoas, as religiões podem desencadear novas culpas, reagudizar conflitos
inconscientes ou ser uma alavanca em que se submetem compulsivamente a normas,
regras, numa obediência cega e infantil. Perdoam o próximo simplesmente “porque
Jesus mandou”, não se permitindo sentir raiva, questionar, refletir, elaborar
os fatos vividos.
O perdão é um processo gradual, lento, doloroso, em que
muitas vezes precisamos vivenciar angústia, indignação e sentimentos
contraditórios. Conflitos, ambivalência, medo, raiva, culpa podem ser
mobilizados e não devemos reprimi-los excessivamente.
A fé, infelizmente, pode ser utilizada como válvula de
escape para a pessoa não se dar conta de sua própria agressividade. E perdoar
pode se transformar em compulsão a reprimir a agressividade sentida, mediante a
ofensa recebida. O motor de todas essas defesas é o terrível sentimento de
culpa inconsciente desse grupo de pessoas, nada desprezível em termos
numéricos.
As religiões podem funcionar como fuga de uma agressividade
mal canalizada, e a pessoa não somente reprime a raiva que sente como retorna a
mesma para o seu próprio interior. Uma fé assim vivida pode levá-la à
depressão, pânico e até graves doenças psicossomáticas ou, no mínimo, a uma má
qualidade de vida. Algumas pessoas rompem bruscamente ou não aderem a nenhuma
religião, criticando todas elas.
A psicanálise é a ciência que lida com esses sentimentos de
culpa da pessoa. Essa ciência promove um maior espaço de liberdade e
responsabilidade na construção de sua história e do mundo.
Infelizmente, Freud só percebeu a religião como uma neurose
coletiva movida pela culpa e pelo infantilismo, em que a criança projeta na
figura de Deus seu desamparo infantil e transfere (quando adulto) seus anseios
de amor infinito, dos pais para um “deus de prótese”.
Para um psicanalista cristão chega a ser doloroso esse
fosso, esse abismo aparentemente existente entre psicanálise e religião, que o
próprio Freud tentou sustentar. Porém, é preciso lembrar que Freud sofreu muito
em sua infância com as humilhações e desprezos que seu pai, Jacob, passava por
ser Judeu. Além disso, tinha grande receio de que o puritanismo vitoriano,
vigente na sua época, rechaçasse suas desconcertantes descobertas
psicanalíticas. Apesar disso, nunca recusou pacientes que se declarassem
adeptos de quaisquer religiões e se tornou grande amigo de um pastor chamado
Pfister. Esse último se tornou psicanalista e amigo para sempre.
A psicanálise pode ajudar o cristão justamente nos pontos
que Freud criticou. Ela pode nos ajudar a desfazer mitos inconscientes,
idealizações quanto aos nossos pais da infância, auxiliar na elaboração de
nossa agressividade e a desfazer os conflitos de nossa sexualidade. Articulada
a uma fé madura nos ajuda a não deslocar para Deus e a religião nossas
fantasias e frustrações infantis.
E assim depurados pela psicanálise, as ilusões e
idealizações infantis, e de nossos excessos de culpa, estaremos mais aptos na
descoberta do verdadeiro Deus: o Deus do perdão, da misericórdia e do amor.
Integrados pela fé madura e mais livres de nossos conflitos inconscientes,
estaremos mais abertos para sentir e viver Deus em tudo e em todos.
4. Psicanálise e
perdão
É que a força e o conteúdo maior de nossos sentimentos,
mágoas, feridas se referem a situações tão penosas e antigas – nos reportam à
nossa infância e adolescência – que os recalcamos em nossos inconscientes e nos
tornamos alienados desse saber. Porém, na vida adulta, quando situações
semelhantes acontecem conosco, deslocamos com toda força nossas indignações e
mágoas reagudizadas para a situação atual. A mesma ganha fortes pinceladas
emocionais, e a mágoa dirigida às pessoas das relações atuais é desproporcional.
Assim, é comum escutarmos pessoas falando que “não foram com a cara” de alguém,
mesmo que esse jamais tenha feito qualquer coisa de prejudicial a elas… Isso
não se refere apenas ao “narcisismo das pequenas diferenças” como nos ensinou
Freud. O inconsciente é formado por traços de memória, por representações e
fantasias que a criança produz a partir de suas vivências, principalmente com
os pais e irmãos. Muito do que sentimos, na atualidade, vem dessa fonte que se
aproveitou de um gancho, de um dado atual para se reatualizar em nossas vidas.
Até mesmo um olhar, um lugar, um jeito de falar pode detonar a angústia ou o
amor… Não somos senhores de nossa própria casa, de nosso eu e o inconsciente
penetra e se apodera de boa parte dessa casa. Algumas vezes tratamos um vizinho
ou algum colega de trabalho com desconfiança ou frieza. Pequenas desavenças se
transformam em grandes confusões e disputas, pois no inconsciente, vizinho,
colega, por associação, pode representar um próximo, um irmão rival da infância.
Na vida amorosa, catástrofes, brigas, separações muitas vezes seguem a lógica
do inconsciente, da realidade psíquica.
Corremos o risco de deslocar, projetar, transferir para o
cônjuge todos os nossos anseios e desejos de sermos amados incondicionalmente.
Idealizamos uma relação como gostaríamos de ter tido com nossa mãe (ou pai). No
momento em que o cônjuge sai desse lugar ou “falha”, todos esses anseios
primitivos de amor ideal podem vir à tona e a desilusão e a mágoa inconscientes
podem reaparecer ou nos causar angústias inexplicáveis ou até mesmo depressões.
A figura de um político, policial, padre, professor ou
alguém que se coloque como autoridade, lei, pode ter o poder de nos remeter às
nossas mais primitivas angústias, medos e raivas enraizados nas formas como
essas leis foram passadas por nossos pais e introjetadas por nós.
Muitas vezes perdoamos as pessoas de nossa realidade atual,
fazemos um esforço tremendo para resolver a situação. Mas a ferida mais
profunda inconsciente e infantil continua intocável. Somente aparamos a planta
desse mal, mas suas raízes psicológicas continuam vivas e prontas para se
manifestar na primeira oportunidade que tiverem.
Perdoar é um processo complexo de libertação emocional e
espiritual. Conversar com Deus, com o padre, o amigo, o psicanalista, com o
agente da dor, tudo isso pode fazer parte desse belo, doloroso e lento
processo. Silenciar, negar, sufocar a raiva inicial que o acontecimento provoca
são as piores soluções, pois isso não ajuda a elaborar o acontecimento e a
realmente se livrar e aprender com a situação. O ideal é que a pessoa consiga
expor para o outro o quanto foi atingida, e que no diálogo possa haver
crescimento para ambos e a reconciliação se faça. Porém, nem sempre isso é
possível. Não controlamos o outro, sua capacidade de rever a si mesmo e seu
grau de espiritualidade. Quando a ferida é muito profunda, ela ainda deixa um
resto, uma cicatriz pela vida toda. Ela só irá esmaecer-se por completo no
instante final, quando o ser humano em sua liberdade final estará mais próximo
de suas verdades derradeiras: a bondade e a misericórdia de Deus presentes.
A capacidade de perdoar se diferencia de pessoa para pessoa.
O grau de maturidade da fé e a história singular da pessoa definem esse
potencial. Para aqueles a quem foi dada pouca oportunidade, em sua infância, de
restaurar os outros, quando diante de sua destrutividade, o perdão é mais
difícil. A criança é dotada do desejo de destruir a si e aos outros quando
sente falta de cuidados ou excessivas frustrações. Cabe aos pais a tarefa de
diminuir essa destrutividade através do amor. Caso este falte, as fantasias
destrutivas aumentam e a capacidade de reparação da criança pelos danos feitos
em fantasia aos pais, diminui. Quando adultos, terão menos capacidade de
reflexão e implicação nos seus atos, menos capacidade de perdoar a si e aos
outros.
Perdoar significa avanço psicológico e espiritual. É
restaurar o outro e o mundo interno. Ao perdoar o outro, estamos
inconscientemente dando uma trégua ao nosso próprio eu. Em termos de
psicanálise, nosso superego – nossa parte da mente que observa, julga e pune
nossos desejos (Id) e atos – se torna, no ato do perdão, menos exigente, menos
carrasco. Nosso eu se torna mais livre e saudável. Tratamos os outros conforme
o nosso superego nos trata. Quando perdoamos o outro, automaticamente nos
apaziguamos.
Fazer o bem ao próximo deveria ser tão caro a nós, quanto o
bem que gostamos e precisamos receber dele. Porém, a psicanálise nos ajuda a
penetrar na profundidade das palavras de Jesus na cruz: “Pai, perdoai, eles
(TODOS NÓS) não sabem (AO CERTO) o que fazem” (SABEMOS APENAS PARCIALMENTE O
QUE FAZEMOS).
José Del-Fraro Filho*
* Psiquiatra, Psicanalista, autor do livro Os obstáculos ao
amor e à fé: Amadurecimento Humano e Espiritualidade Cristã, Paulus.
Email: clinicafraro@planetarium.com.br
FONTE: REVISTA VIDA PASTORAL
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