Da liturgia à catequese
Por uma catequese mistagógica dos sacramentos
Francisco Taborda, SJ . Nas
“Reflexões e conclusões práticas finais” do Seminário Nacional, promovido pela
CNBB sobre “A eucaristia na vida da Igreja”, lemos como
primeira conclusão:
Embora o termo “mistagogia” não seja unívoco entre os Padres da Igreja, é lícito partir do sentido etimológico da palavra “mistagogia”, que significa “conduzir para dentro do mistério”, “introduzir no mistério”. Uma catequese mistagógica, portanto, explicita teoricamente a experiência dos sacramentos recebidos, ou seja, é uma teologia dos sacramentos e da liturgia que não se separa da experiência mediada pelos mesmos.
Passos de uma mistagogia
Em sua obra sobre a mistagogia, o teólogo e liturgista
italiano Enrico Mazza, a partir de estudos sobre Ambrósio de Milão, Teodoro de
Mopsuéstia, João Crisóstomo, Cirilo [ou João] de Jerusalém e Agostinho de
Hipona, estabelece em cinco passos o método mistagógico desses Padres da
Igreja:
1) Descrição do rito, gesto, ação ou formulário litúrgico.
2) Identificação na Escritura (AT e NT) da passagem ou das
passagens que explicitam a salvação que se celebra no rito em questão.
3) Aprofundamento do evento salvífico narrado no(s) texto(s)
escolhido(s), de forma a mostrar, com recurso a outros textos e à reflexão
teológica, seu significado para a salvação. Neste passo o enfoque é o evento
salvífico e não o sacramento enquanto tal.
4) Retorno ao rito, aplicando a ele o que foi visto nos
passos anteriores. A liturgia é, assim, interpretada a partir dos textos
bíblicos que se referem ao evento que a fundamenta.
5) Explicitação do dinamismo do conjunto a partir de uma
terminologia propriamente sacramental, recorrendo à gama de termos específicos
para designar a dinâmica sacramental: mistério, sacramento, figura, imagem,
semelhança e os pares semânticos imagem-verdade e tipo-antítipo. Principalmente
nestes últimos se pode ver o aspecto relacional do sacramento: o sacramento se
relaciona com o evento salvífico que lhe serve de base numa relação de
identidade e diferença.
As duas etapas essenciais da mistagogia são a segunda e a
quarta: a identificação da passagem ou das passagens da Escritura que
descreve(m) o evento salvífico ao qual o sacramento se refere, e a aplicação à
liturgia de tudo o que se encontrou ao aprofundar o evento de salvação. O
método-base numa tal catequese é, portanto, a tipologia bíblica que permite
unificar Mistério, celebração e explicitação do sentido do Mistério para nós.
Esboço de mistagogia eucarística
A ação litúrgica como um todo, bem como cada pormenor, pode
dar espaço a uma mistagogia. A título de amostra tentaremos especificar os
passos de uma mistagogia a partir do todo da celebração eucarística.
Primeiro passo: o rito
As duas mais antigas descrições do rito eucarístico são da
autoria de Justino, filósofo e mártir († entre 163 e 167), o mais conhecido
entre os Padres apologistas. Elas têm o mérito de descrever com suma brevidade
o rito eucarístico e, ao mesmo tempo, corresponder em grandes linhas ao que se
realiza ainda hoje em todas as famílias litúrgicas.
Aqui interessa a segunda descrição, que se refere a uma
eucaristia dominical e é mais completa que a primeira: “E no dia que chamamos ‘dia do Sol’, por parte de todos os
que moram seja na cidade, seja no campo, se faz uma reunião num mesmo lugar e
se leem as memórias dos apóstolos ou os escritos dos profetas, enquanto o tempo
o permite. Depois, uma vez que o leitor terminou, aquele que preside admoesta
com um discurso e exorta à imitação destas belas coisas. Depois nos levantamos
todos juntos e elevamos súplicas. Então, [...] logo que terminamos a súplica,
se traz pão, vinho e água, e aquele que preside eleva tanto súplicas como ações
de graças conforme sua capacidade, e o povo aprova por aclamação, dizendo o
Amém. Então os elementos eucaristizados são distribuídos e recebidos por cada
um; e por meio dos diáconos uma parte é mandada também aos que não estiveram
presentes" .
Retomando com outras palavras essa descrição, encontramos
nela três elementos constitutivos do rito: 1) a reunião da assembléia; 2) a
liturgia da Palavra, constando de leituras do Antigo e do Novo Testamento, da
homilia e das preces dos fiéis; 3) a liturgia eucarística, com a apresentação
dos elementos (pão e vinho), a oração eucarística que a assembléia faz sua
através do amém, e a comunhão.Basta essa descrição bem genérica para este primeiro passo.
Segundo passo: a raiz bíblica do evento salvífico
A constituição da assembléia remete ao qahal yhwh, do Antigo
Testamento, traduzido ao grego pela Bíblia dos Setenta como ekklesía, de onde
vem nossa palavra “Igreja”. Ekklesía etimologicamente significa “os convocados
(por Deus)”, os chamados de toda parte (ek). Quem constitui a assembléia do
povo de Deus é o próprio Deus, que lhe dá seu nome. Já a partir daí se pode ver
que a eucaristia é a visibilização dos convocados por Deus, torna visível, aqui
e agora, a Igreja de Deus.
E torna-a presente como aquilo que a caracteriza: a raça
eleita, o sacerdócio régio, a nação santa, o povo da aliança (cf. Ex 19,6; 1Pd
2,9). Vale dizer: a ekklesía se faz visível para prestar seu culto a Deus,
culto constituído indissoluvelmente de dois momentos inseparáveis: a liturgia
da Palavra e a liturgia eucarística. Na sua referência mútua, esses dois
elementos falam da espécie de salvação que Deus oferece e dá: uma salvação,
cuja iniciativa é totalmente de Deus. Por isso é preciso primeiro ouvir a
Palavra e acolhê-la no coração e na vida, resposta que se dá através da ação de
graças por tudo que Deus fez por nós em seu Filho Jesus e, já antes dele viver
entre nós, em vista dele. A ação de graças, por sua vez, tampouco é iniciativa
nossa, mas obediência à ordem do Senhor, quando mandou fazer em seu memorial o
que ele próprio fizera em sua última Páscoa. E ainda aí é preciso suplicar,
para que Deus aceite nossa ação de graças e por Cristo, no Espírito Santo,
estabeleça comunhão conosco.
A unidade entre liturgia da Palavra e liturgia eucarística
pode ser mostrada à base de Ex 24,1-11, que narra o estabelecimento da aliança
entre Deus e seu povo, constituindo-o qahal, ekklesía. Trata-se de uma narração
complexa, onde se podem distinguir pelo menos duas fontes: uma conservada nos
vv. 3-8; outra nos vv. 1-2 e 9-11.
Em Ex 23,3-8, aparece claramente a iniciativa de Deus:
Moisés “tomou o livro da aliança e leu para o povo”. O povo acolhe a Palavra,
dizendo: “Tudo que yhwh falou, nós o faremos e obedeceremos” (v. 7; cf. 3-4).
Ato seguido, Moisés asperge o povo com o sangue das vítimas, dizendo: “Este é o
sangue da aliança que yhwh fez convosco, através de todas essas cláusulas” (v.
8; cf. v. 6).
O evento salvífico em questão nesta narrativa é a aliança de
Deus com seu povo, selada na Palavra e no sangue do sacrifício. A Palavra são
as cláusulas da aliança que o povo aceita e se compromete a cumprir, atraindo
sobre si a maldição da morte (sangue), no caso de ser infiel à aliança, e
participando da vida (sangue) que Deus oferece a seu povo.
A narração dos discípulos de Emaús (cf. Lc 24,13-35) ilustra
relação semelhante entre liturgia da Palavra e eucaristia. Desanimados com o
desfecho que tivera a vida de Jesus de Nazaré, dois discípulos se afastam de
Jerusalém, caminhando em direção a Emaús. O Senhor Ressuscitado os acompanha
incógnito e entabula com eles um diálogo em que desvenda o sentido das
Escrituras. Com o coração ardendo pela Palavra que lhe fora assim proclamada,
os discípulos convidam-no a ficar com eles. Jesus completa sua evangelização
com o gesto de partir o pão, que lhes possibilita reconhecê-lo. A Palavra
prepara a eucaristia; esta realiza o que foi proclamado, fazendo descobrir quem
é aquele que a proclama. Uma remete à outra.
Terceiro passo: o evento salvífico
O evento salvífico que a eucaristia nos intermedeia é a
aliança. Pela eucaristia entramos na aliança estabelecida pelo sangue de
Cristo, a “nova e eterna aliança”. A aliança cria entre os parceiros uma relação
de comunhão. No caso da aliança com Deus, uma relação desigual entre o Deus
fiel e o povo que sempre de novo abandona o compromisso e rompe a relação. Em
Cristo, Deus dá a conhecer que seu compromisso é definitivo e permanente, “de
uma vez por todas” (hápax) (cf. Hb 9,28; 1Pd 3,18). Por isso mesmo, chegaram
novos tempos, “esses tempos que são os últimos” (Hb 1,2), mais que no sentido
cronológico, no sentido qualitativo: tempos de salvação.
É essa a diferença entre Ex 23 e Lc 24. A aliança antiga
precisava ser sempre de novo renovada, pois a fidelidade do povo não era
garantida; a nova aliança é eterna, justamente porque a fidelidade dos dois
parceiros está assegurada: a fidelidade de Deus, obviamente; mas também a
fidelidade humana, pois, desta vez, da parte da humanidade, está o homem-Deus,
Jesus Cristo, que recapitula em si mesmo todas as coisas (cf. Ef 1,10). Ele é a
cabeça do Corpo que é a Igreja (cf. Cl 1,18). Vale dizer: o povo de Deus não é
povo de Deus só por pertencer-lhe, mas o é por ser o povo daqueles que foram
incorporados a Cristo pelo batismo e, sempre de novo e mais profundamente, pela
eucaristia, de forma a constituírem com ele, no Espírito Santo, “una mystica
persona”, “uma só pessoa mística”, uma só pessoa em mistério. Isso não garante
a fidelidade de todos e cada um dos batizados, mas assegura que sempre haverá
batizados que serão fiéis à aliança, porque o sim de Deus em Cristo à
humanidade é, pela ação do Espírito Santo, definitivo.
Na Antiga Aliança encontram-se documentos que estabeleciam
aliança e textos em que se constatava o rompimento da mesma. No primeiro caso
citem-se como exemplo a injunção de aliança (cf. Js 24,2-15) e a adesão à
aliança (cf. Dt 26,5b-10); no segundo caso, o processo (rîb) contra Israel (cf.
Dt 32,4-25), o processo (rîb) contra Deus (cf. Sl 44) e a todá ou confissão da
fidelidade de Deus e da infidelidade humana (cf. Ne 9,6-37)7 . A todas essas
passagens bíblicas é comum uma estrutura teológico-literária bipartida, em que
a um parágrafo histórico corresponde, como segundo elemento, um parágrafo de
injunção (quando Deus se dirige à humanidade) ou de súplica (no caso de o texto
dirigir-se a Deus).
A oração central da eucaristia, a anáfora, é um texto desse
gênero. A assembléia reunida, pela boca de seu presidente, se dirige ao Pai,
louvando-o por sua ação em Cristo e fazendo o memorial de seu mistério
redentor. Baseada nessa ação de Deus, suplica que a promessa seja cumprida e o
Espírito Santo enviado sobre a comunidade e sobre os dons, para que, pela força
do pão e do vinho transubstanciados, a Igreja, por sua vez, seja
“transubstanciada” no Corpo eclesial de Cristo e assim se cumpra a aliança.
Quarto passo: volta ao rito
Com isso já estamos novamente no rito, mas agora podemos
olhá-lo com novos olhos, não só numa descrição exterior, fenomenológica do que
a Igreja realiza, mas numa percepção em profundidade. Atenta ao Cristo-Palavra
que é o pão descido do céu a ser acolhido na fé (cf. Jo 6,32-51b), a Igreja se
apressa a receber o Cristo-Pão da vida, sua carne dada pela vida do mundo (cf.
Jo 6,51c-58), para unir-se a ele e constituir com ele um só corpo (cf. 1Cor
10,16-17). O que a Palavra anunciou, o sacramento realiza.
O evento salvífico da nova e eterna aliança é o mistério
pascal de Cristo, sua morte e ressurreição, dos quais participamos pelos
sacramentos. E os sacramentos nos intermedeiam essa participação por serem
memorial do mistério pascal. É a palavra-chave para a compreensão do
sacramento, mormente da eucaristia.
Quinto passo: a dinâmica sacramental
O contexto vital em que o “memorial” se localiza é a ceia
pascal judaica. Nela não se realiza mera recordação de um fato passado; não é
uma atividade para momentos de lazer. É uma instituição. A última ceia dos judeus no Egito, antes de sua libertação,
passando o Mar Vermelho (cf. Ex 12,1-14.25-27), esclarece a noção de memorial.
Essa ceia no Egito é, primeiramente, um pré-anúncio, um sinal profético do que
haveria de acontecer no dia seguinte: a libertação. Como tal, não teria por que
se repetir. Mas Deus não pensa só naquela geração que sai do Egito, mas em toda
a multidão “numerosa como as areias da praia e como as estrelas do céu” que
haveriam de suceder os libertos do Egito.
Essas gerações subseqüentes não teriam passado o Mar e,
assim, não teriam experimentado o amor de yhwh ao escolher este povo,
libertá-lo da escravidão e fazer com ele aliança. Por isso, o Senhor ordena:
“Este dia será para vós um memorial (zíkkaron), e o celebrareis como uma festa
para o Senhor; nas vossas gerações a festejareis; é um decreto perpétuo” (Ex
12,14).
Gamaliel, possivelmente o mestre de Paulo no rabinismo,
explica o sentido do memorial.
“Em toda geração e geração, cada um é obrigado a ver-se a si
próprio como tendo ele mesmo saído do Egito, como foi dito ‘E anunciarás a teu
filho naquele dia, dizendo: É por causa disto que o Senhor fez por mim [o que
ele fez], quando saí do Egito’ [Ex 13,8]. Não somente a nossos pais remiu o
Santo – bendito seja Ele! –, mas também a nós remiu com eles, conforme está
dito: ‘E nos fez sair de lá, para nos fazer vir e dar-nos a terra que tinha
jurado a nossos pais’ [Dt 6,23]” .
Graças ao memorial, realizado anualmente na ceia pascal, o
judeu sabe que a libertação não foi uma ação de Deus no passado, mas atinge
também a ele. O anúncio do querigma pascal (cf. Ex 13,8) se faz na primeira
pessoa: “fui eu que saí do Egito” por obra e graça do Senhor. E assim é
proclamado mesmo que a pessoa que assim fala jamais tenha fisicamente posto os
pés no Egito.
Através das gerações, o memorial agrega o participante da
ceia pascal anual ao povo da aliança, liberto por Deus. Ela é o único meio de
participar efetivamente do acontecimento passado. “Memorial” está, portanto,
longe de ser mero fenômeno psicológico, uma recordação saudosista. É uma
instituição que, com os pés da fé, transporta o judeu fiel ao grande evento
salvífico, a passagem do Mar, como a última ceia no Egito fora capaz de
antecipar a salvação a ser vivenciada no dia seguinte, às margens do Mar
Vermelho. Com os pés físicos ele continua aqui onde celebra a ceia; com os pés
teológicos – os pés da fé –, está lá à beira do Mar, prestes a atravessá-lo, e
já do outro lado, livre para sempre dos egípcios, constituindo-se como povo de
Deus.
Conforme narram os Sinóticos, foi numa ceia pascal que
Jesus instituiu a eucaristia. Dentro da mesma dinâmica da Páscoa judaica
devemos interpretar a Páscoa cristã. Como na instituição da ceia pascal do
Antigo Testamento, na instauração da nova ceia pascal é ordenado aos ouvintes:
“Fazei isto (o sinal do pão e do vinho) em meu memorial” (Lc 22,19; 1Cor
11,24-15). O grego anámnesis, usado no Novo Testamento, corresponde e traduz o
hebraico zíkkaron, memorial.
A eucaristia segue, pois, a mesma dinâmica da ceia pascal
judaica. Através da interação dos gestos de Jesus na última ceia, tomando o
pão, o cálice, dando graças e repartindo entre os seus em memorial de tudo que
Deus fez através de seu Filho encarnado, os participantes são transportados,
com os pés teológicos – os pés da fé –, ao Calvário e ao sepulcro vazio do Ressuscitado,
para participar da redenção adquirida no sangue de Cristo. Podemos repetir com
Gamaliel: De geração em geração, cada um de nós é obrigado a ver-se a
si próprio – com os olhos penetrantes da fé – como tendo estado lá no Calvário
na primeira Sexta-feira santa e diante da tumba vazia na manhã da ressurreição.
Pois não só nossos pais estavam lá; mas também nós todos, reunidos hoje aqui
para celebrar a eucaristia, estávamos lá com eles, prestes a morrer na morte de
Cristo e a ressurgir em sua ressurreição.
A partir dessa cláusula de Gamaliel, aplicada à experiência
cristã, pode-se entender o que significa sacramento. Não se trata de um “sinal”
estático, mas de um gesto simbólico que contém em si um dinamismo que reporta o
participante ao evento salvífico originário. É o que os Padres querem dizer com
aquela rica gama de termos com que designam o sacramento: mistério, imagem,
figura, semelhança, antítipo, símbolo .
Só uma palavra de conclusão: fica aí o desafio para os
especialistas em catequese de como traduzir para hoje a sabedoria contida nesse
método criado por nossos Pais na fé.
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