quinta-feira, 13 de setembro de 2012

BÍBLIA E CATEQUESE
FORMAÇÃO DA BÍBLIA: TRADIÇÃO ORAL E FIXAÇÃO ESCRITA

TRADIÇÃO ORAL

       Nas aldeias, contavam-se histórias, anedotas, epopeias; cantavam-se refrãos, recitavam-se velhos poemas que velassem pelo cumprimento dos costumes: o tecer relatos mantinha viva a tradição do povo.
          A origem foi contada como desígnio de Deus; os profetas comunicavam seus oráculos; Paulo pregava o que recebeu da Tradição oral; o de Jesus se contava foi de forma oral durante muitas décadas e posto por escrito para ser escuta e guardado na memória.
       Embora a cultura de Israel conhecesse desde cedo a escritura, durante muito tempo a cultura oral prevaleceu. As tradições eram mantidas de geração em geração, produzindo-se adaptações, de modo que fossem relevantes para o momento: a tradição oral sofria atualizações.
          Tradição é um processo de crescimento no curso do qual se preserva o velho, mas interpretado como novo. É a contínua comunicação de valores significativos.
     No transcurso de sua transmissão, algumas tradições se mesclaram com outras semelhantes ou relacionadas. (O relato do dilúvio é mescla de duas tradições).
        As tradições não foram consideradas como espécie de verdades eternas, mas como expressões de vida e sobreviviam à medida que foram significativas para a vida. O interesse não estava tanto no passado, mas no presente, não tanto na recordação, mas naquilo que o narrado tem de relevante para o hoje de seu auditório.
         Pelo fato mesmo da comunicação ao longo do tempo, em toda comunicação oral se produz uma série de alterações:
 **O acréscimo ou exagero de elementos que tornam o fato narrado mais atraente, mais impactante. Não é estranho que se introduzam diálogos (Tentações de Jesus em Mc não tem diálogo, porém, Mt e Lc introduzem).
**A perda de detalhes como nomes, datas e outros, ou introdução de elementos mais modernos é comum.
**Com o passar do tempo perde-se a noção das condições culturais da época original. A distância temporal e cultural encurta-se, atualizando nesse sentido o elemento transmitido.
**O pronunciamento, dito ou discurso, tende a receber uma forma poética que facilita sua recordação. **Certas frases significativas costumam repetir-se como estribilho, especialmente quando tem forma poética, como é fácil observar nos salmos.
**O que foi conservado da Tradição Oral é aquilo que realmente tinha importância para o povo. As que perdiam relevância não se comunicavam mais, se dissipavam no esquecimento. Na Bíblia encontramos enormes vazios de informação que gostaríamos de conhecer, exemplo disso, a infância de Jesus.

FIXAÇÃO ESCRITA

       A surpresa diante do achado do “livro da lei”, durante a restauração do templo por ordem do rei Josias em 621, e de seu conteúdo deve-se a que o povo era guiado por tradições orais. Com essa novidade, o povo se compromete a seguir a Iahweh e guardar seus mandamentos, aqueles inscritos no livro. Este livro constava substancialmente do que se encontra em Deuteronômio 12 a 16, onde se condena o paganismo e se exige a estreita lealdade a Deus.
      As referências a “um livro da Lei” em relatos sobre Moisés e sobre o êxodo, bem como as menções de que se escreveu tal Lei durante o êxodo do Egito (século XII), foram introduzidas nas narrações para firmar a origem antiga da Lei e sua relação direta com Deus (cf. Ex 32,16).
      Como sabemos, Israel era uma sociedade de cultura oral. Este aspecto é deixado de lado quando há necessidade de fixar-se uma identidade, isto é, o grupo, aos poucos, sente a necessidade em escrever seu passado, uma história, pois, toma consciência e passa a projetar, no agora, um futuro. É uma questão de identidade de um grupo cada vez maior com características próprias seja no povo ou na raça, na cultura ou em sua religião. Firmados na Palestina e com a ameaça da perda de identidade por povos circunvizinhos – o que impulsionou a redação dos escritos bíblicos – o grupo que entende a consciência de identidade própria e histórica como aspectos importantes, fixam por escritos oráculos de profetas, o que assinala a formação da história de Israel como povo escolhido de Deus. Essa afirmação se fortalece quando se analisa a deportação entendida pelo povo como um exílio, pois, tal deportação foi espiritualmente revivida como a experiência no Egito. “É assim que os elementos mais estáveis, como a escritura, códigos firmes de conduta e formalização de instituições e estruturas sociais (sinagoga?), e graças ao fato de que os deportados eram a elite intelectual e culta, incluindo profetas, afirmaram sua identidade como povo escolhido de Deus” (ARENS, p. 78).
      Com o correr do tempo, e por razões diversas, as diferentes tradições que circulavam e se preservavam como unidades independentes umas das outras foram reunidas em pequenos “livros”. Por exemplo, as tradições de corte histórico foram preservadas em sua forma escrita nos “depósitos” do palácio, principalmente aquelas tradições referentes aos anais e à correspondência. Já as de corte profético, foram preservadas em “escolas proféticas”, formadas por discípulos de um profeta, em forma oral. Contudo, os escritores contaram com formas escritas além das tradições orais para a composição de suas obras. Dessas fontes, a oral e a escrita, o escritor fez uma seleção. O material selecionado foi ordenado de maneira mais ou menos lógica pelo escritor. “Em alguns casos, a ordem é cronológica; em outros, é temática, ou segundo o que o escritor queria comunicar” (ARENS, p. 81). O fato das tradições existirem em sua maioria como unidades autônomas, o redator na organização das “obras” seguia um propósito particular. Como exemplo, temos Mateus (NT) que juntou material tematicamente por via catequética.
      Outro aspecto presente no tema das tradições presentes na Escritura é o emprego de frases ilativas como “depois de algum tempo”, “um dia”, “de volta ao outro lado do lago”, “em certa ocasião”, devido um vazio existente entre uma cena e outra seguinte e não se sabe o que ocorreu entre as duas: falta continuidade. Temos isso muito presente em Atos do Apóstolos: são várias tradições colocadas uma ao lado das outras, “segundo o ponto de vista e segundo o propósito do redator” (ARENS, p. 82).
      Vejamos o trabalho editorial. Nesta tarefa, o escritor não se limitava a copiar tradições ou encadear unidades autônomas, o que faz dele um autêntico autor literário. Com frequência lemos escritos que contêm multiplicidade de tradições com a impressão de estar diante de uma unidade completa e coerente. [O exemplo mais próximo é quando lemos a Bíblia: logo pensamos num todo fluente; porém, este estudo crítico nos mostra o contrário. É notável que a estruturação bíblica seja permeada por diversas tradições e por escritos de tempos distintos].
      “Recordemo-nos de que aquele que colocou por escrito as tradições, sejam estas orais ou escritas, passou de receptor a emissor” (ARENS, p. 82), daí os acréscimos e os comentários, as adaptações ao seu momento histórico, o do autor. Este deu ao texto que ia escrever ênfase, acréscimos ou recortes que pareciam necessários sob seu ponto de vista. É o que se observa quando se tem presente o mundo do autor bíblico em contraste com aquele do qual herdou as tradições. Daí a importância de compreender as tradições por parte desse redator, influenciado pelas circunstâncias e condicionamentos culturais e históricos de seu momento. Como se viu, não semente foram alteradas as tradições orais, mas também as escritas. “O redator é emissor de uma mensagem para sua comunidade em seu tempo” (ARENS p. 83) pelo aspecto de tomar o material herdado e transmiti-lo a um determinado “público” em forma oral e isso é interessante, pois, de fato, os textos bíblicos foram escritos para serem escutados.
      É importante frisar que cada livro foi composto independentemente dos outros: os autores não se propuseram em fixar seus escritos com a intenção de que eles fizessem parte de uma coleção (isso é posterior). “Cada livro era uma unidade completa e autônoma” .
Concluindo, observamos que uma vez redigida a obra, nem sempre permaneceu tal como o escritor a deixou. Assim como as tradições orais foram reinterpretadas por parte do receptor, os textos escritos foram reinterpretados e outros textos escritos, não somente os novos, mas também em revisões de mesmas obras, o que justifica novas edições aumentadas. Em outras palavras, aumentavam o conteúdo, retocavam acrescentando, eliminando ou alterando o texto. Fato observável nas significativas notas indicadas ao pé da página nos textos críticos da Bíblia na língua original, “as mais notáveis das quais se podem encontrar também nas notas ao pé da página da Bíblia de Jerusalém (p. 85).
       Mesmo com a facilidade que trouxe a fixação por escrito das tradições orais, muito se perdeu destas. A forma escrita permitia se dirigir ao texto com caráter de norma, o que o rodeava de uma sacralidade que a forma oral não tinha. Contudo, a fixação escrita não significou de maneira alguma o fim da oralidade na comunidade.

** Resumo do livro "A Bíblia sem mitos" (Introdução crítica a Sagrada Escritura), de Eduardo Arens feita por Roberto Bocalete

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